Curiosidade é virtude desejada no ambiente universitário, afirma Jacyntho Brandão
Professor da Fale ministrou aula magna para calouros de cursos noturnos
A experiência de sair do ensino básico e ingressar em uma universidade é como mudar da água para o vinho. Essa metáfora deu o tom da segunda aula magna de recepção aos calouros da UFMG, ministrada na noite dessa segunda-feira, 1º, pelo professor Jacyntho Lins Brandão, da Faculdade de Letras (Fale), no Auditório Nobre do Centro de Atividades Didáticas de Ciências Naturais (CAD 1), campus Pampulha. “A experiência de transformação se renova a cada turma que ingressa na UFMG”, destacou o professor, que ouviu essa afirmação de uma servidora, quando ingressou na Universidade como aluno, em 1972.
Após abertura, em que coube ao reitor Jaime Ramírez recepcionar os estudantes ingressantes nos cursos noturnos, o professor Jacyntho Brandão discorreu sobre essa experiência de transformação e da constituição da universidade como comunidade, em seus diferentes aspectos.
Segundo o professor, a mudança que o estudante experimenta na academia se deve, principalmente, à autonomia e à possibilidade de escolha que encontra no ambiente universitário. “Oriundos de mundos diversos, os alunos ingressam em diferentes cursos e escolhem seus próprios caminhos, usufruindo de autonomia para o aprendizado. Toda a riqueza que a Universidade oferece ganha sentido na formação que cada um escolhe”, afirmou.
De acordo com Jacyntho, fazer parte de uma comunidade é outro aspecto que influencia na transformação no status de estudante. “Essa comunidade se renova frequentemente, a cada semestre, em cada nova chegada. E que comunidade é essa?”, perguntou à plateia de calouros.
Risco da fragmentação
A resposta mais comum, segundo Jacyntho Brandão, é a que enxerga a universidade como uma comunidade científica. “Para essa reflexão, precisamos nos atentar aos dois termos, o substantivo e o adjetivo”, advertiu o professor, para quem o vocábulo "científico", isoladamente, sugere uma fragmentação.
“A especialização, em uma instituição de ensino como a UFMG, é importante e necessária. Porém, de forma isolada, nenhuma área formaria o substantivo 'comunidade'. A fragmentação põe em risco a própria ideia de Universidade”, alertou.
Ao ingressar na UFMG, lembrou o professor aos calouros, cada aluno passa a participar da construção efetiva dessa comunidade. E não é apenas o ingressante que tem expectativas, mas a própria Universidade espera uma virtude em cada novo estudante: a curiosidade.
“Somos criados com a ideia de que a curiosidade é um vício. Na universidade, ela se transforma em uma virtude essencial para a formação. Essa é a grande diferença entre a UFMG e instituições privadas de ensino superior: aqui, o aluno tem a possibilidade de compor seu próprio trajeto, já que o currículo não é fechado nem previamente definido”, destacou.
A Universidade também espera que, além de estudantes, os novos alunos também sejam intelectuais, termo que, segundo Jacyntho, faz referência à “inquietação no sentido da descoberta e do conhecimento”. “Incitar o exercício da curiosidade é a marca da UFMG”, afirmou.
Protagonismo estudantil
A concepção da universidade como comunidade escolar está relacionada às primeiras instituições de ensino superior, como a Universidade de Bolonha, fundada em 1088. Segundo Jacyntho, essa universidade se denominava, em latim, universitas scholarium, ou, no português, comunidade de estudantes. “Os estudantes precederam os professores na composição da universidade. Naquela época, os alunos contratavam professores para dar aulas, e até o reitor era estudante”, destacou.
A universidade como comunidade de estudantes carece de autonomia para continuar a existir, afirmou Jacyntho, criticando iniciativas como o movimento Escola sem Partido, que, para ele, são “tentativas de interferir naquilo que a instituição define como objeto a ser estudado”. “O projeto universitário está além das conjunturas políticas de um determinado momento. É um projeto de país, um projeto de Brasil que pretendemos construir”, defendeu.
De acordo com o professor, iniciativas como a do Escola sem partido perdem de vista a distância entre ócio, advinda do grego skholé – que significa “tempo do ócio” e está associada ao próprio sentido da criação das escolas –, e negócio. “Nós podemos ser, a princípio, um lugar improdutivo. Um local de pensamento e formação de cidadãos. Não podemos aceitar que forças externas tentem tolher nossa reflexão e ditem o nosso ritmo”, defendeu Jacyntho.
Comunidade ética
O estudante de uma universidade pública como a UFMG não pode perder de vista seu compromisso com a sociedade brasileira, que mantém a universidade em funcionamento, alertou Jacyntho Brandão: “O grande risco que uma instituição como a nossa corre é o de se tornar uma ilha. Precisamos criar canais para não perder o contato com a sociedade que nos financia”.
Enxergar e perceber a universidade como uma comunidade ética é outra perspectiva essencial, na avaliação de Jacyntho. “A Universidade não pode perder de vista o fato de que faz parte de algo muito maior, que é a sociedade”, afirmou.
Segundo o professor, é necessário que o estudante tenha sempre em mente o compromisso de intervir para transformar a realidade que o cerca. Para Jacyntho Brandão, a partilha de um bem comum é “a lógica diferenciada que determina a ação política da Universidade”.
O professor aproveitou a oportunidade para tecer críticas a editorial recente do jornal O Globo, que defendeu o fim da universidade pública gratuita. “Precisamos ir na direção contrária a dessa proposta, buscando ofertar a todos os cidadãos brasileiros a experiência de um ensino superior público e gratuito”, defendeu. Segundo o professor, o compromisso com um país justo, com igualdade de acesso ao ensino superior, deve ser de todos aqueles que ingressam na UFMG.
“A partir de hoje, vocês, calouros, passam a usufruir de um direito que o Brasil deveria resguardar a toda a população. E devemos aproveitar aquilo que a UFMG nos proporciona conscientes de que tudo isso é mantido pela sociedade brasileira. E manter uma instituição universitária como a nossa é caro: o orçamento da UFMG hoje é maior que o de todos os municípios mineiros, com exceção de Belo Horizonte. O uso irresponsável do bem público privatiza aquilo que deveria ser de todos”, alertou.
Ainda nessa perspectiva, segundo Jacyntho, é preciso que o estudante enxergue a solidariedade como parte constituinte do ethos da Universidade, a fim de aprender a lidar e conviver com diferentes perspectivas, pontos de vista, opiniões, gerações, gêneros, opções religiosas, entre outros aspectos. “O ethos da UFMG está na diversidade”, afirmou.
A palavra solidariedade, lembrou Jacyntho, advém do francês solidaire, que, por sua vez, originou-se do latim solidus, para descrever uma experiência caracterizada pela completude. Um objeto descrito como solidaire, segundo o professor, era aquele cujo movimento dependia do movimento de outros objetos.
“É nessa perspectiva que o conhecimento precisa ser solidário na UFMG. Ver o mundo com os olhos emprestados de outro é a experiência mais enriquecedora, que justifica o investimento no conhecimento. É o que nos permite sair da mesmice. Esse é o exercício da solidariedade que conforma o ethos da Universidade”, defendeu.
Vida acadêmica na UFMG
A programação especial de recepção aos calouros segue nesta terça-feira, 2, quando os estudantes participarão de atividades em suas unidades.