Festival de Inverno investiga dimensão estética do momento político brasileiro
Evento, que começa no dia 19, está de volta ao formato 100% presencial e ocorre em parceria com o 22º International Congress of Aesthetics
“A crise também é estética”. A frase, que indica certa relação existente, no Brasil, entre a ideologia fascista-totalitarista e um apelo visual cafona, brega, de mau gosto, começou a circular mais fortemente a partir de 2016, época em que ocorriam as campanhas do centro comercial e financeiro da Avenida Faria Lima, em São Paulo, pelo impeachment da então presidente Dilma Rousseff, e se intensificava a escalada de degradação – ética, política, estética – da malha social brasileira e de sua esfera pública. A ironia é que, nascida como um diagnóstico que convocaria ao debate e à ação, a frase foi logo consumida pela mesma degradação que sugeria: ela tornou-se um “meme”, lugar-comum estético esvaziado de seu poder de efetiva contestação.
A despeito disso, o aspecto estético da crise na vida política brasileira segue reverberando no dia a dia, com implicações que vão do campo social ao político, todos atravessados pelo aspecto cultural. É dessa complexidade que se ocupa o 55º Festival de Inverno UFMG, evento que, neste ano, volta ao seu formato integralmente presencial e será realizado de 19 a 27 de julho nos principais equipamentos de cultura da Universidade em Belo Horizonte. Com o tema Emergências e insurgências: estética, políticas e culturas, a edição busca investigar a estética, no sentido filosófico do termo, como um espaço por excelência para a disputa política no Brasil contemporâneo — e a centralidade que a cultura exerce nesse embate.
Em seus oito dias, o evento vai sediar uma série de mesas-redondas, shows, oficinas e mostras de diferentes manifestações culturais do país, em uma programação integralmente gratuita. Além dessas atividades, haverá ainda uma residência artística e alguns lançamentos de livros. As atividades do Festival serão realizadas no Centro Cultural, no Conservatório, no Espaço do Conhecimento e no Espaço Acervo Artístico, em Belo Horizonte, e em alguns ambientes livres do campus Pampulha, como a Praça de Serviços, o saguão da Reitoria e os corredores da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich).
A programação completa pode ser consultada no site do evento e em seus perfis nas redes sociais (Facebook e Instagram). Nela, destacam-se, por exemplo, a roda de conversa que ocorrerá com o escritor Cristino Wapichana no dia 21, sexta-feira, às 15h, no Espaço do Conhecimento; a performance da poeta e atriz Luíza Romão, no dia 22, sábado, às 17h, no Espaço do Conhecimento, de seu premiado livro Também guardamos pedras aqui; a apresentação que o poeta Ricardo Aleixo fará de poemas e canções no dia 23, domingo, às 20h, no Conservatório; o show que o congadeiro Maurício Tizumba fará no Centro Cultural UFMG no dia 24, segunda-feira, às 19h; a palestra que o bailarino Rui Moreira, diretor de Artes Cênicas da Fundação Nacional de Artes (Funarte), fará no dia 25, terça-feira, às 14h30, no Espaço do Conhecimento; e a performance – denominada Sopapo – que o próprio bailarino fará no dia 26, quarta, às 19h, em frente ao auditório Sônia Viegas da Fafich.
Política, cultura, estética
O enfoque do Festival de Inverno UFMG na estética decorre da parceria que, neste ano, o evento firmou com o 22º International Congress of Aesthetics, que será realizado do dia 24 ao dia 28 deste mês na Fafich – em parte se sobrepondo, em parte dando continuidade à efervescência reflexiva iniciada no Festival. Trata-se do mais importante congresso de estética do mundo, realizado desde 1913 pelo International Association of Aesthetics (IAA), que tem Rodrigo Duarte, professor do Departamento de Filosofia da UFMG, como seu atual presidente.
“Essa relação entre estética e política nunca esteve tão evidente quanto neste momento”, afirma o pró-reitor de Cultura da UFMG, Fernando Mencarelli. “Nos últimos anos, obras de arte, performances e manifestações tradicionais foram, e continuam sendo, alvo de ataques, que tomam formas variadas, sempre em torno de uma pauta que projeta para o país um contorno extremamente conservador, marcado por traços autoritários, e que reconhece o campo estético como campo de disputa”, afirma. Mencarelli exemplifica sua análise com o ataque a Brasília em 8 de janeiro, tendo em vista as impactantes imagens de destruição real e simbólica que o acontecimento gerou.
Com avaliação semelhante, a reitora Sandra Regina Goulart Almeida acrescenta que, diante de um cenário como esse, as universidades passam a ter um papel ainda mais fundamental nas discussões sobre um projeto de país que tenha a cultura, em toda a sua pluralidade, como dimensão central. “Precisamos pensar a cultura como direito, instrumento de inclusão e de combate ao autoritarismo. Isso está na gênese da UFMG. Nosso primeiro reitor, Mendes Pimentel, dizia que ‘a Universidade jamais será cúmplice de tiranias’. Esse é o traço fundamental do nosso ethos”, pontifica a reitora.
De estéticas e estéticas
Embora a palavra “estética” seja usada, em nosso dia a dia, para designar o mero cuidado com a aparência (no sentido, por exemplo, de “estética facial” ou “estética automotiva”), do ponto de vista da filosofia, os sentidos do termo são outros e mais complexos. Ali, explica o professor Rodrigo Duarte, o conceito está mais associado ao modo como somos afetados por algo quando o percebemos.
A noção surge no âmbito da filosofia grega clássica, com pensadores como Platão e Aristóteles, que refletiam sobre a beleza, a confecção de obras de arte e o modo como somos afetados por esses objetos. Mais tarde, em meados do século 18, o filósofo alemão Alexander Baumgarten (1714-1762) avançou e propôs submeter ao título “Estética” toda uma disciplina filosófica, que deveria se ocupar daquilo que, até então, era objeto da poética, da crítica e de certos modelos de teoria do conhecimento. É nesse contexto que a noção de estética se reveste de um caráter também político.
“Ao contrário do que possa parecer à primeira vista, e em flagrante oposição aos usos cotidianos do termo, a disciplina pode ser fortemente politizada, na medida em que muito dos conteúdos veiculados pela ideologia dominante tem algum teor de natureza estética”, explica Rodrigo Duarte. “O exemplo mais evidente disso é a estratégia de toda a propaganda — não apenas comercial, mas também política — de incluir algum apelo fortemente estético nos seus conteúdos”, diz. Nesse contexto filosófico, “estética” então significaria, hoje, algo como “teoria filosófica da percepção de objetos que ocasionem nos sujeitos sentimentos relativos à beleza, à sublimidade, à comicidade ou até mesmo à fealdade de objetos por eles percebidos”.
“Hoje, mais do que nunca, a estética é a emissária de uma urgente renovação do pensamento conectado a demandas sociais, políticas e culturais que extrapolam em muito o âmbito acadêmico e estão a clamar por uma necessária conexão com os movimentos oriundos da própria sociedade”, explica o professor. “Nesse sentido, a parceria entre o 22º International Congress of Aesthetics e o 55⁰ Festival de Inverno da UFMG é uma oportunidade perfeita para a aproximação da estética filosófica com a prática da cultura no seu sentido mais amplo e frutífero”, finaliza.
Tradição e referência
Criado em 1967, o Festival de Inverno UFMG é, ao mesmo tempo, uma tradição de Minas Gerais e uma referência nacional. O evento visa promover a interlocução cultural entre a Universidade e a sociedade, “aliando arte e cultura contemporânea de ponta às manifestações culturais da tradição”, informa-se em seu release de divulgação.
Após passar por Ouro Preto, Diamantina, São João del-Rei e Poços de Caldas, o Festival fixou-se em Belo Horizonte a partir de 2014. Em sua história, ele ensejou o nascimento de grupos artísticos de projeção nacional e internacional, como o Galpão, o Corpo, a Oficcina Multimédia e o Uakti.
Em razão dessa trajetória, o evento recebeu da Associação das Universidades do Grupo Montevidéu (AUGM) um diploma de distinção em junho de 2021 na categoria Gestão cultural – mais especificamente, em razão das boas e inovadoras práticas da UFMG de colaboração com os governos locais para a realização do evento.
22º International Congress of Aesthetics
Realizado desde 1913, o International Congress of Aesthetics (ICA) é a série mais importante de congressos de estética do mundo. O tema da 22ª edição – da qual participam mais de 20 países – é Contemporary aesthetics: Dialogues through art, culture and media.
Sua programação – que terá lugar nos auditórios da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich) da UFMG de 24 a 28 de julho, em paralelo à programação do Festival de Inverno – pode ser consultada no site ica2022.abrestetica.org.br.
“O tema desta edição segue a linha de congressos anteriores, de apresentar a arte, a cultura e a própria estética como elementos de aproximação entre povos diferentes”, resume Rodrigo Duarte, atual presidente (gestão 2022-2025) da International Association of Aesthetics. A IAA é principal realizadora do evento.
A edição deste ano é realizada em conjunto com a Associação Brasileira de Estética (Abre), instituição da qual Rodrigo é o atual diretor de relações internacionais, e com a linha de pesquisa Estética e Filosofia da Arte do Programa de Pós-graduação em Filosofia da UFMG.