Pesquisa e Inovação

Onda direitista é potencializada por lideranças autoritárias

Fenômeno de dimensão mundial foi analisado em debate organizado pelo IEAT

Carlos Ranulfo, do Departamento de Ciência Política da UFMG
Carlos Ranulfo: quadro complexo, não direcionalDébora Maia / IEAT-UFMG

Nos últimos meses, tem ganhado força entre jornalistas e cientistas políticos o discurso de que ocorre uma ascensão generalizada – e, em alguma medida, relacionada – das direitas no mundo. O assunto foi tema de uma mesa-redonda na UFMG na noite de quinta-feira, 12, da qual participaram Carlos Ranulfo Melo, professor do Departamento de Ciência Política da UFMG, António Costa Pinto, professor da Universidade de Lisboa, e a antropóloga Rosana Pinheiro-Machado, professora da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

O encontro – presidido por Estevam Las Casas, diretor do Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares da UFMG, e mediado por Rodrigo Patto Sá Motta, professor do Departamento de História – deu início ao Ciclo IEAT 20 anos, evento em que se comemora o aniversário de duas décadas do instituto.

Ao tratar da ascensão da direita na América Latina, Carlos Ranulfo fez questão de problematizar a percepção dessa guinada como uma onda. “Ondas se caracterizam por um crescimento contínuo e espraiado de determinados fenômenos e possuem, em sua origem, um substrato comum”, disse, lembrando que na América Latina “os dados mostram um quadro mais complexo, não unidirecional”, assim como o fato de que no espaço latino-americano é recorrente a alternância de poder entre direita e esquerda, havendo inclusive horizonte para o retorno da esquerda ao poder em países hoje sob o comando da direita.

Segundo Ranulfo, se, por um lado, os dados mostram que a América Latina conta com uma base social suscetível a incursões autoritárias, por outro, esses mesmos dados mostram que essa base, em alguma medida, sempre existiu na região, não sendo, portanto, suficiente para justificar por si mesma a constituição de um movimento contra a democracia. Para o professor, o fator decisivo para a ascensão de regimes autoritários e antidemocráticos costuma ser menos a existência dessa base que o surgimento de uma liderança capaz de canalizar as propensões autoritárias. “As propensões autoritárias das sociedades só ameaçam de fato a democracia quando – e se – surgem lideranças dispostas a canalizá-las”, disse.

Conjunção 'sui generis' de contigências
Bolsonaro seria então esse nome, segundo o professor: alguém que, em alguma medida, montou um cavalo selado para outro. “A verdade é que Bolsonaro poderia não ter acontecido. Ele é fruto de uma conjunção de fatores adversos. Bolsonaro nunca esteve nos planos de Eduardo Cunha ou de Aécio Neves, por exemplo, nem dos cruzados da Operação Lava-Jato, e tampouco era levado a sério pelos partidos de direita até dois ou três meses antes das eleições. Bolsonaro é um azarão”, afirmou ele, considerando que o ex-capitão elegeu-se presidente em razão de uma conjunção sui generis de contingências.

E quais seriam esses fatores? Os protestos de junho de 2013 e sua aversão à política, o aumento da polarização política, com o surgimento de movimentos de direita e o crescimento do antipetismo, a crise econômica iniciada em 2015, a derrota imposta à esquerda com o impeachment de Dilma e a sequente derrota dos setores que articularam seu afastamento, o processo de criminalização da política conduzido pela Operação Lava-Jato e aceito pela mídia, e os acontecimentos de 2018, por fim, no âmbito da campanha eleitoral: os robôs nas redes sociais, as fake news, a prisão de Lula, os erros da esquerda, o fracasso dos candidatos do PSDB e o atentado a faca sofrido por Bolsonaro, que desaguou na sua “providencial ausência nos debates”.

Rosana Pinheiro-Machado, professora da UFSM
Rosana: ascensão em três momentosFoca Lisboa / UFMG

Extrema-direita engoliu a direita
Rosana Pinheiro-Machado introduziu sua comunicação com uma avaliação crítica dos gargalos propiciados pela política lulista de incentivo ao consumo como recurso para uma suposta inclusão social. Valendo-se dos dados coligidos em uma pesquisa etnográfica longitudinal que realizou nos últimos dez anos, a pesquisadora afirmou que, ao contrário do que se poderia supor inicialmente, as camadas menos abastadas da sociedade, que foram beneficiadas por essa política lulista, não tenderam necessariamente para a esquerda no espectro político nacional.

Mais tarde, ao referendar o conjunto de fatores elencado por Carlos Ranulfo para a eleição de Jair Bolsonaro, Rosana Pinheiro-Machado acrescentou à lista as delações da JBS na operação Lava-Jato. Em sua opinião, aquelas delações tiveram importância central na ascensão da extrema-direita no Brasil. “Um ponto que eu gostaria de destacar nessa timeline é o escândalo da JBS. É totalmente claro que esse é um ponto em que Bolsonaro dispara nas pesquisas. O colapso no sistema político já vinha ocorrendo havia muito tempo, mas aquele foi o ponto em que a população sentiu o colapso. O que vai acontecer depois disso é que a própria direita vai ser engolida pela extrema-direita”, lembrou.

Ao tratar da ascensão da extrema-direita no Brasil e da caminhada de Bolsonaro até o Planalto, Rosana a dividiu em três momentos: a fase do “nicho engajado”, nos anos de 2016 e 2017, em que apenas 7% do eleitorado se mostravam engajados com o bolsonarismo; a fase da primeira metade de 2018, em que ainda só se mapeava um engajamento de 18% do eleitorado com o espectro bolsonarista, à qual Rosana denominou como fase de “uma possibilidade”; a fase da segunda metade de 2018, o tempo de uma “efervescência da radicalização coletiva”, como demarcou a professora. Foi o período em que 40% a 50% do eleitorado se engajou com o postulado ideológico extremista do candidato.

Tendo em vista o recrudescimento do ideário autoritário no país e sua consequente ameaça à democracia, Ranulfo fez questão de lembrar que, além de precisar do surgimento de um canalizador, como foi Bolsonaro, ele também depende de uma disposição das elites para se concretizar. “O que a história e a ciência política nos ensinam é que o elemento decisivo para que haja uma real ameaça à democracia é a atitude das elites frente à democracia, e aí eu não estou me referindo apenas à elite política, mas também às elites da sociedade civil, às elites do judiciário, às elites econômicas e empresariais.”

Rosana Pinheiro-Machado: críticas à política de incentivo ao consumo como recurso para inclusão social
Rosana Pinheiro-Machado: críticas à política de incentivo ao consumo como recurso para inclusão social  Foca Lisboa / UFMG

Ameaça
Para Carlos Ranulfo, o presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, é hoje a principal ameaça à democracia na América Latina. "Sem dúvida, Bolsonaro e o bolsonarismo são uma ameaça à democracia, ao Estado de Direito, aos direitos humanos, a todos os avanços sociais e políticos que alcançamos após a ditadura”, afirmou. “Bolsonaro está muito longe do padrão da direita latino-americana. As lideranças mais expressivas da direita latino-americana são lideranças clássicas de direita, que se preocupam basicamente com o liberalismo econômico. Elas não estão buscando travar guerras de valores nem preocupadas com coisas como o marxismo cultural”, lembrou.

Ranulfo fez questão de demarcar a distância programática existente entre Bolsonaro e nomes como Sebastián Piñera (presidente do Chile), Mauricio Macri (presidente da Argentina), Luis Lacalle Pou (candidato à presidência no Uruguai), Carlos Mesa (candidato à presidência na Bolívia), além de partidos como o PPK, no Peru. “Esses são nomes de uma direita ou centro-direita clássica, que se preocupa com a economia e se mantém distante do embate em torno de valores”, disse. Para o professor, os “parentes” mais próximos de Bolsonaro na América Latina seriam outros: “O atual presidente da Colômbia, Iván Duque, que é filho do uribismo [esteira ideológica de Álvaro Uribe, ex-presidente colombiano], um campo político ligado às milícias, à extrema direita, ao narcotráfico, aos paramilitares; o fujimorismo [esteira ideológica de Alberto Fujimori, ex-presidente do Peru], que é uma corrente autoritária no Peru, a União Democrática Independente (UDI), partido de direita chileno cujos setores mais radicais defendem explicitamente o legado de Augusto Pinochet, a Arena, partido extremamente conservador de El Salvador”

Para Ranulfo, contudo, ao se analisar o cenário da América Latina em termos relativos, Bolsonaro pode ser percebido como uma ameaça ainda maior que aquela oferecida pelo fujimorismo ou “pela pior direita colombiana”. “O legado político-social que Bolsonaro pode destruir no Brasil é muito maior que o legado que uma direita pode destruir no Peru ou na Colômbia”, afirmou. “Por piores que seja Iván Duque, presidente da Colômbia, ou por pior que possa ser um eventual governo fujimorista no Peru, esses países têm muito menos a perder, em termos de legado político e social, do que o Brasil.” Nesse sentido, sugeriu Ranulfo, a ameaça democrática oferecida por Bolsonaro estaria mais próxima daquela representada pelo atual governo da Hungria, sob a liderança do primeiro-ministro Viktor Orbán. “Bolsonaro não chegou ainda ao ponto da Hungria porque ele não tem o controle do Parlamento”, afirmou o professor.

António Costa Pinto, professor da Universidade de Lisboa: crise da democracia representativa
António Costa Pinto: legitimação do discurso autoritárioDébora Maia / IEAT-UFMG

Democracia representativa em crise
Antes das exposições de Rosana e Ranulfo, o cientista político português António Costa Pinto apresentou um panorama da ascensão da direita e da extrema-direita em diversos lugares do mundo, concentrando-se particularmente no caso europeu, com a “legitimação de um discurso de tipo autoritário” que se dissemina pelo continente. Após discutir o conceito de populismo em sua imbricação com a direita, lembrar que as esquerdas perderam as bases populares e demarcar que vivemos hoje uma crise do sistema representativo no mundo, Costa Pinto lembrou, a título de exemplo, que o grupo que mais cresceu no Parlamento Europeu nos últimos anos foi o da extrema-direita.

Com tudo isso em vista, o professor alertou: “O aspecto mais importante do discurso político que unifica esses partidos populistas de direita [na Europa] – independentemente de terem uma estrutura ideológica mais forte ou mais fraca – é a crítica à democracia representativa e uma dinâmica contrária aos partidos mainstream, contrária às classes políticas, contrária aos partidos políticos. Agora, isso vai nos levar de fato a assistir a uma crise da democracia representativa, que nos vai causar grandes problemas? Não sabemos”, reconheceu. “As poucas experiências [consolidadas] que temos [de ascensão de partidos populistas de direita ao poder] ocorreram em países relativamente periféricos, como é o caso da Hungria. Assim, o panorama a que assistimos hoje é de uma crise da democracia representativa, mas cujos resultados são ainda incertos”, finalizou.

Ewerton Martins Ribeiro