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Morre o professor Ennio Leão, referência da pediatria brasileira

Emérito da UFMG se destacou pela ética e por seu 'compromisso prioritário' com crianças e adolescentes

Ennio Leão
Ennio Leão editou a obra 'Pediatria ambulatorial', referência seminal para a prática clínica no paísFoto: Arquivo | Faculdade de Medicina da UFMG

Morreu, aos 92 anos, o professor emérito Ennio Leão, docente do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina. Seu corpo será velado nesta terça-feira, 5 de setembro, na Sala Memorial 2 do Parque da Colina, em Belo Horizonte, das 8h30 às 10h30.

Entre as muitas realizações de sua carreira, Ennio foi o criador e o editor sênior do livro Pediatria ambulatorial, uma das referências definitivas do campo, publicado pela primeira vez em 1983. Em sua sexta edição, que saiu no ano passado, a obra foi renomeada como Ennio Leão Pediatria Ambulatorial, em homenagem ao seu decano.

O professor aposentado da Faculdade de Medicina Joaquim Antônio César Mota, que trabalhou nas primeiras edições da obra, lembra sua relação com Ennio. “Ele sempre foi uma referência ética, profissional e humana para mim. Eu sempre aprendi muito com ele. É uma admiração moral, científica e intelectual que sentimos por ele. Ele foi o meu pai profissional”, diz.

“Eu acho que eu não consigo expressar o apreço e a gratidão que tenho”, acrescenta Joaquim. “Nós fazíamos aniversário no mesmo dia e sempre ligávamos um para o outro para nos dar parabéns. Meu vínculo com ele sempre foi muito afetivo. Como os romanos, eu prefiro falar não que o Ennio morreu, mas que Ennio viveu”, diz, celebrando a memória do amigo.

Joaquim Mota também foi orientado por Ennio Leão no mestrado e no doutorado cursados em ciências da saúde na UFMG. O aluno e amigo, mais tarde tornado companheiro de profissão, destaca que Ennio, apesar de humilde, era ao mesmo tempo muito corajoso. “Na época do meu mestrado eu resolvi fazer uma dissertação qualitativa, o que não era usual. Como meu orientador, o Ennio bancou e caminhou comigo o tempo todo. Mais tarde, na tese, foi a mesma coisa: propus um trabalho ligado à questão ética da pesquisa, e ele me apoiou desde o primeiro momento. Digo isso para mostrar que o Ennio era essa pessoa ao mesmo tempo corajosa e discreta; não fazia alarde, mas assumia e bancava o que acreditava ser o certo”, afirma Joaquim Mota.

Contribuição original
Em 2019, por ocasião de uma homenagem realizada no 21º Fórum da Academia Brasileira de Pediatria, na Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), o também emérito da UFMG Roberto Assis Ferreira, professor da Faculdade de Medicina, afirmou que Ennio Leão deu contribuição técnica e científica “inovadora e original” para a medicina. Trata-se, segundo Ferreira, do modelo “clínico” que Ennio pôs em prática e que serviu de inspiração para toda a sua geração, em oposição ao modelo de médico meramente “técnico”, isto é, o profissional que “vai se limitando a aplicar ou vender uma técnica, a ser instrumento ou mesmo apenas a intermediar a aplicação de uma tecnologia”.

“Na prática do clínico Ennio Leão, demarcou-se a sua postura ética, em que é evidente o compromisso prioritário com o paciente, independentemente de sua origem social, se da clínica privada ou da enfermaria do hospital”, destacou Roberto Ferreira. Para o colega, Ennio Leão foi um “amigo solidário”, “médico solícito”, “professor dedicado”, um verdadeiro “mestre”, isto é, “aquele que indica o caminho”. “O seu nome, a sua presença, a sua atuação, a sua maneira particular de ser, de clinicar, de ensinar, as suas expressões, as formas de se apresentar, de existir, significaram e continuam significando muito para diversas gerações de pediatras”, afirmou.

'A pediatria entrou em minha vida'
Ennio Leão se formou em medicina em 1955, na própria UFMG. Iniciou sua carreira trabalhando com gastroenterologia e dermatologia. No ano seguinte, especializou-se em pediatria no Hospital São Vicente de Paulo (atual Hospital das Clínicas) e, em 1979, concluiu o doutorado em Ciência da Saúde, também pela UFMG. Daí em diante, seguiu trabalhando com crianças.

Em 1989, Ennio, mesmo aposentado da Universidade, continuava trabalhando voluntariamente no Ambulatório de Doenças Nutricionais do Hospital das Clínicas. Em 2011, recebeu a medalha Cícero Ferreira, que homenageia os profissionais que se destacaram pela grande dedicação e contribuição à unidade. No ano anterior, foi agraciado com a Grande Medalha da Inconfidência.

“Foi a pediatria que entrou na minha vida”, disse o professor em entrevista ao site da Faculdade de Medicina em 2018. Paralelamente à carreira clínica, ele também atuou no campo administrativo da área. De 1980 a 1995, por exemplo, integrou conselho científico da Sociedade Mineira de Pediatria (SMP); em março de 1997, tomou posse na Academia Brasileira de Pediatria (ABP) como acadêmico titular, passando em maio de 2015 a emérito; de 2012 a 2018, ocupou o cargo de assessor da presidência na SMP.

“A pediatria brasileira perde uma das referências mais importantes para a nossa especialidade. Deixou um importante legado e foi exemplo de dedicação aos cuidados das crianças e adolescentes”, afirmou Clóvis Francisco Constantino, presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), em nota de pesar publicada no site do órgão.

Também em nota, o Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina relembrou particularmente as ênfases da trajetória de médico, professor e pesquisador de Ennio Leão. “Teve participação ativa na clínica pediátrica, com destaque para a hidratação venosa em resposta à perda de líquido causada, principalmente, pela diarreia aguda, além de ter participado da divulgação da terapia de reidratação oral em Minas Gerais. Defendeu um diagnóstico diferenciado para a icterícia neonatal e foi estudioso das doenças nutricionais, especialmente da desnutrição, do raquitismo e do escorbuto. Mostrou a possibilidade do tratamento ambulatorial da desnutrição, numa época em que o diagnóstico da doença implicava tratamento hospitalar", enumerou o Departamento.

Ewerton Martins Ribeiro