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Morreu, aos 70 anos, o professor Julio Jeha, da Faculdade de Letras

Enterro ocorreu ontem, segunda-feira, dia 9; professor foi um dos grandes pensadores do Brasil sobre o tema dos monstros e das monstruosidades na literatura

Julio Jeha foi professor da Faculdade de Letras da UFMG
Julio Jeha foi professor da Faculdade de Letras da UFMG Foto: Arquivo pessoal

Morreu neste domingo, 8 de dezembro, o professor Julio Cesar Jeha, professor da Faculdade de Letras (Fale) e do Programa de Pós-graduação em Letras: Estudos Literários (Pós-Lit) da UFMG, do qual foi também coordenador. Ele lutava havia vários anos contra uma doença resiliente. O sepultamento ocorreu ontem, segunda, 9.

Especialista em literatura de língua inglesa (em particular, na obra de Edgar Allan Poe) e no tema do mal na literatura (por extensão, também em outras artes), Julio dedicava-se particularmente ao estudo da categoria ficcional do monstro como um símbolo da capacidade moral humana de se cometer monstruosidades reais. Nessa seara, fundou com colegas e coordenava o núcleo de estudos Crimes, Pecados e Monstruosidades da Fale.

Julio Jeha escreveu, entre outros, o livro Monstros e monstruosidades na literatura (Editora UFMG, 2007), em que investiga a categoria do monstro como esse símbolo não apenas da relação de estranheza entre os homens, mas também do mal-estar que experimentamos perante o desenvolvimento da ciência, o progresso tecnológico, as guerras e os genocídios. Junto à professora da Faculdade de Letras Lyslei Nascimento, uma de suas grandes parceiras intelectuais, organizou também os volumes Da fabricação de monstros (Editora UFMG, 2009) e Crime e transgressão na literatura e nas artes (Editora UFMG, 2015) – este, também com a colaboração de Laura Juárez, da Universidade Nacional de La Plata, na Argentina.

Ao Portal UFMG, Lyslei contou que Jeha era um pesquisador particularmente generoso, seja no trato com a geração que o precedeu, seja no trato com a geração que orientou, os alunos, os colegas. Era, em suma, um mestre exemplar. “O Julio era um homem muito elegante. Um colega solidário, amigo, franco. Ele era um verdadeiro ‘lorde’, como a gente costumava dizer; uma pessoa de uma polidez inigualável. Com ele, não havia hora para se perguntar, para se pedir uma opinião; era um pensador sempre disponível, realmente genial no trato humano. No seu enterro, várias gerações se encontraram para se despedir dele”, disse a professora.

A reitora da UFMG, Sandra Regina Goulart Almeida, que é professora na Faculdade de Letras, também lembrou com muito afeto do amigo, com quem conviveu por mais de três décadas. “Julio foi não apenas um colega de área na Faculdade de Letras, mas também um amigo muito próximo – há mais de 30 anos. Foi um colega muito parceiro, um pesquisador e professor muito dedicado. Trabalhamos muito juntos. Os estudantes adoravam suas aulas, e ele era um professor exemplar. Deixa muita saudade e um legado muito importante para os estudos literários no Brasil”, disse.

‘Um colega maravilhoso’
“Quando cheguei à UFMG, fui recebida por Julio Jeha de braços abertos. O primeiro evento que fiz na Universidade foi organizado com ele. Foi um evento internacional sobre Edgar Allan Poe. Foi um sucesso”, lembra Lyslei, emocionada. “De fato, ele foi um professor brilhante, seriíssimo, inigualável. Ao mesmo tempo, ele mantinha seu bom humor a toda prova. Era um colega maravilhoso, um homem de um pensamento teórico muito sofisticado. A sua perda é uma perda irreparável. Estou com um vazio em mim. O que fica é o reconhecimento pelo homem genial que ele era”, disse. Lyslei Nascimento era amiga e parceira de Julio Jeha há cerca de 24 anos, época da entrada dela na UFMG.

Julio Jeha e sua orientanda Késia Oliveira nos jardins da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa: uma vida de ensinamentos
Julio Jeha e sua orientanda Késia Oliveira nos jardins da Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa: uma vida de ensinamentos Foto: Arquivo pessoal

Késia Rodrigues de Oliveira, última pesquisadora a ser orientada por Julio Jeha no Pós-Lit, publicou nesta terça-feira, 10, um depoimento em suas redes em que também homenageia o professor. Aposentado desde 2018, Jeha só deixou de assumir orientações quando a doença não mais permitia o trabalho. “Foi um privilégio ser a última orientanda de doutorado do professor Julio Jeha na Faculdade de Letras da UFMG. Eu nunca me esquecerei dos seus ensinamentos, do nosso encontro em Lisboa, dos cafés de orientação da tese que terminavam com algum relato incrível sobre esportes. Descanse em paz, meu querido mestre. Sentiremos muito a sua falta por aqui”, escreveu a pupila.

Sob a orientação de Jeha, Késia defendeu tese A literatura como traição: transgressões de cenas bíblicas, em setembro de 2023. Em seu depoimento sobre o professor, a hoje doutora também lembrou, bem a propósito do tema bíblico de sua tese, que, na assinatura de alguns e-mails, seu orientador apresentava um trecho do pregador de Eclesiastes. Para ela, o trecho diz com precisão do espírito com o qual Julio Jeha encarava a vida. O trecho consta no capítulo 8:15 do livro de Eclesiastes da Bíblia Sagrada, onde se diz: “que se desfrute a vida, porque debaixo do sol não há nada melhor para o homem do que comer, beber e alegrar-se”.

A literatura como uma estratégia para elaborar a morte
Em razão de seu know-how no tema, Julio Jeha também organizou a seleção de 19 histórias publicadas na antologia Contos clássicos de terror (Companhia das Letras, 2018), um marco na edição brasileira do gênero. Na introdução da publicação, ao lembrar que “o medo do fim fundamenta as lutas que travamos todos os dias, como indivíduos e civilizações”, o especialista argumentou sobre a literatura (e, em particular, a literatura de terror) ser uma ferramenta cuja natureza é “comunicar o essencial” e preparar-nos para a nossa derradeira batalha, o “embate final com a morte”.

“Das primeiras narrativas babilônicas até as histórias que contamos hoje, de um modo ou de outro, encenamos o conflito entre o bem e o mal, isto é, entre nossa sobrevivência e nossa destruição. De forma mais explícita, a literatura que se convencionou chamar de terror, ou ainda gótica e de horror, nos permite viver, por procuração, situações angustiantes paralelas às de nossa experiência. Ou ainda situações que desejaríamos nunca experimentar. Entre a sedução e o medo, porém, criamos estratégias, muitas vezes catárticas, de elaborar a morte.”

​Ewerton Martins Ribeiro