Pesquisa e Inovação

O ‘coisário’ do cassino-museu: pesquisa mergulha na história de prédio modernista na Pampulha

Em seu trabalho de doutorado em Artes, Marconi Drummond Lage reúne acervo de mais de 800 itens relacionados ao antigo cassino e ao MAP, ocupantes do mesmo edifício

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Prédio do cassino-museu em construção, no início da década de 1940.Foto: autor não identificado | Museu Histórico Abílio Barreto

Marconi Drummond Lage é um “artista-curador-colecionador”, na sua própria definição. E nessa condição ele desenvolveu um projeto ambicioso: formou um acervo que conta uma história do Cassino da Pampulha e do Museu de Arte da Pampulha (MAP), ocupantes do mesmo prédio projetado por Oscar Niemeyer, em Belo Horizonte. Essa trajetória vai da abertura do cassino, em 1942, até os dias atuais, passando pelo período de 1947-1957, marcado por utilização errante e degradação do edifício. O acervo, integralmente digital, é um dos resultados da pesquisa de doutorado que Marconi defendeu em 2024 no Programa de Pós-graduação em Artes da UFMG.

Não existe, segundo Marconi Drummond, um acervo gerado da história da ocupação do prédio. “O MAP não chegou a produzir material robusto, e restou o que eu chamo de lacuna, fissura, ruína”, diz o pesquisador, que fez toda a sua formação em artes visuais na Escola de Belas Artes da UFMG, atua como curador independente e exerceu essa função no MAP de 2006 e 2010. Lá, Marconi cuidou de exposições artísticas, históricas, panorâmicas, de publicações e do programa de residências artísticas. Dessa experiência, segundo ele, origina-se a tese.

Marconi encontrou material histórico, iconográfico, artístico e documental em diversas instituições, no Brasil e no exterior, como a Biblioteca Nacional, a Escola de Arquitetura da UFMG, o Instituto Moreira Salles e o Museu de Arte Moderna (MoMA), em Nova York. Os mais de 800 itens (ou “coisas”) já catalogados compõem o que ele denomina “coisário”. Há referências dos mais variados tipos sobre o próprio edifício, como projetos arquitetônicos, azulejos, os jardins de Burle Marx  –, ao cassino – propagandas de espetáculos, menus, fotografias e filmes de época – e ao museu, entre as quais, registros de obras de arte, exposições e diferentes eventos.

Juscelino Kubitschek e dona Sarah no grill-room do Cassino da Pampulha
Juscelino e Sarah Kubitschek no grill-room do Cassino da Pampulha Foto: Genevieve Naylor | Acervo de Escritores Mineiros

“Para construir o repositório, que eu denomino de coisário cassino>>museu, resgato coisas extraviadas de um prédio e de um museu sobreviventes, em permanente processo, desconstruído, paralisado, amortizado, descontinuado”, diz Marconi Drummond.

Por iniciativa do então prefeito de Belo Horizonte (1940-1945), Juscelino Kubitschek, o prédio foi construído junto com a Casa do Baile, a Igreja de São Francisco e o Iate Tênis Clube – os edifícios, projetados por Niemeyer e localizados à beira da lagoa, formam o Conjunto Arquitetônico da Pampulha, marco da arquitetura moderna, reconhecido pela Unesco, em 2016, como Patrimônio Cultural da Humanidade. O cassino funcionou de 1942 a 1946, ano em que os jogos de azar foram proibidos no Brasil, e o museu público municipal foi fundado em 1957. A sede da instituição está fechada desde 2019, aguardando obras de restauração e de segurança no sistema elétrico, entre outras intervenções.

Pensadores e artistas-colecionadores
O trabalho que valeu o título de doutor a Marconi Drummond é dividido em dois volumes, dois sistemas de escrita paralelos. Um é a tese propriamente dita, outro, o acervo inventariado. O pesquisador lançou mão, como referências teóricas, das ideias de pensadores como Walter Benjamin, Michel Foucault e Mario Pedrosa. Ele também recorreu a artistas que foram ou são “colecionadores-arquivistas-enciclopédicos-catadores”, ou seja, que lidam, em sua produção, com métodos museológicos e práticas arquivísticas. Marcel Duchamp, Aby Warburg, Rosângela Rennó, Gerhard Richter e Marcel Broodthaers formam esse outro grupo que deu suporte à formulação da tese.

Marconi Drummond:
Marconi Drummond: experiência artística e curatorial
Foto: acervo pessoal

No texto de seu trabalho de doutorado, Marconi percorre o caminho acadêmico – hipótese, metodologia, resultado –, estabelece conexões entre os acervos, explora a prática da exposição – um dos capítulos, dedicado às “coisidades”, é como um “dispositivo expositivo”, segundo ele, uma espécie de mostra em formato digital – e aborda questões culturais, artísticas e históricas que irradiam de tudo isso. Na montagem do acervo, à exaustiva pesquisa de campo, seguiu-se a etapa da tipificação dos itens, da organização e constituição do repositório digital.

“Para além da história do cassino-museu, lanço mão de minha experiência como curador do próprio MAP, olho para os artistas que trabalham como colecionadores e curadores. Trata-se, de certo modo, de uma experiência artística e curatorial”, descreve Marconi Drummond.

‘Deambulação’
O repositório digital foi concebido sobre a matriz do software livre Tainacan, desenvolvido para a criação de acervos digitais e organização de coleções. Não há um caminho preestabelecido, rígido. A ideia, como diz o artista, é “criar uma experiência de navegação imersiva, uma deambulação”. São três as entradas oferecidas para o percurso na plataforma: coisidade, tipologia e procedência. O usuário encontra itens inesperados como o cardápio do grill-room do cassino em 11 de julho de 1942 com mensagem manuscrita pelo delegado que apontava infração à lei no uso de língua estrangeira (no caso, o francês).

Nota
Fatura de compra de utensílios de cozinha para o cassinoImagem: Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte

Há muito mais. Classificada nas "coisidades" lagoa e água, aparece uma nota de venda de peixes ao posto policial da vizinhança. Marconi encontrou, num catálogo de material de revestimento em faiança, na França, o padrão de azulejo que foi redesenhado para o prédio do cassino-museu. Juscelino e a esposa, dona Sarah, surgem muito rapidamente, dançando, em filme feito em evento no cassino.

A plataforma oferece ao visitante a possibilidade de selecionar itens (coisas), sob qualquer critério, para compor o seu próprio coisário. E essa lista de acervo de um museu particular pode ser impressa em pdf e em planilha do Excel.

“Os usuários podem também doar itens para a constituição do coisário. A coleção é formada também de contribuições voluntárias”, anuncia Marconi Drummond. Mas nada disso, na prática, é para logo. O repositório não pode ainda ser aberto ao público. O pesquisador vem providenciando o licenciamento dos itens, e esse processo promete ser demorado. A boa notícia é que o acesso restrito é possível: ele admite atender, desde já, individualmente, pesquisadores com interesse justificado no acervo.

“Esse meu trabalho tem, entre outros, o objetivo de franquear material para novas investigações e estudos”, afirma o artista-curador-colecionador, enfatizando que o acervo é muito amplo e diversificado, e o repositório e o texto da tese, naturalmente, não esgotam o assunto.

Tese: Coisário cassino>>museu: no entre-espaço de um cassino extinto e um museu em processo
Autor: Marconi Drummond Lage
Orientador: Stéphane Huchet
Programa: Pós-graduação em Artes
Defesa: 24 de junho de 2024

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'Maré (um outro um após o outro em meio à sucessão de instantes acumulados)' (2008), de Angela Detanico e Rafael Lain; plotagem em vinil adesivo sobre vidro, dimensões variáveis 
Imagem: acervo do Cedoc/Museu de Arte da Pampulha 

Itamar Rigueira Jr.