'O jogo de tensão da identidade do negro dura a vida toda', afirma Jeferson Tenório
Escritor ressaltou a importância da racialização dos personagens na literatura em palestra no Festival de Inverno
O escritor Jeferson Tenório abordou, na tarde desta quarta-feira, dia 28, a construção de personagens negros no mundo contemporâneo na roda de conversa Literatura, raça e representação, que integrou a programação do 53º Festival de Inverno da UFMG. Doutorando em Teoria Literária na PUC do Rio Grande do Sul, Tenório estreou na literatura com o romance O beijo na parede (2013), eleito o livro do ano pela Associação Gaúcha de Escritores. É autor de Estela sem Deus (2018) e de O avesso da pele, publicado no ano passado pela Companhia das Letras. A conversa foi mediada pelo professor Eduardo de Assis Duarte, da Faculdade de Letras da UFMG.
Tenório iniciou sua fala destacando que a literatura brasileira representa o negro de forma negativa e estereotipada, pois promove o apagamento dos personagens e os coloca na criminalidade. No entanto, autores negros, como Maria Firmina dos Reis, Luís Gama e Cruz e Sousa, deram uma nova perspectiva de representação dos personagens negros.
“Além do apagamento dos personagens negros, há também um apagamento dos autores negros. Carolina Maria de Jesus exemplifica bem isso. Leitora dos modernistas, ela foi marginalizada por essa corrente literária. Isso ocorreu porque a sua produção não era vista como literatura, e sua própria escrita entrava em desacordo com aquilo que se esperava da literatura, como a gramática que ela usava e os temas que ela trazia”, diz.
O autor usou um termo cunhado pela escritora Conceição Evaristo – "escrevivência" – em alusão ao fato de que escritores negros deixam transparecer, em suas obras, as suas vivências pessoais. “Ao me colocar dentro de uma literatura negra brasileira eu vou atender a alguns requisitos. O que se espera de um autor negro? Que ele traga temas relacionados ao universo negro, como a ancestralidade, as religiões de matriz africana, a memória africana e o colonialismo, que acabam nos colocando nesse lugar de literatura afro-brasileira".
Abandono polissêmico
Jeferson Tenório também destacou a importância da racialização dos personagens negros e brancos. Ele explica que, enquanto os personagens negros precisam ser racializados para que o leitor se dê conta de que se trata de um negro, o mesmo não ocorre com os personagens brancos. “Como escritor, eu demorei para me dar conta do que significava racializar os meus personagens. Depois percebi que, mais importante que isso, era racializar os personagens brancos, porque, na tradição literária brasileira, os brancos são naturalizados nos livros e, por isso, não precisam ser racializados. Não é comum a descrição do personagem branco, enquanto o negro é fartamente descrito e, muitas vezes, por meio de estereótipos”, conta.
Tenório concluiu sua fala com uma análise sobre o abandono polissêmico dos seus personagens negros. Segundo ele, esse abandono está associado ao Estado, à família e às dificuldades enfrentadas pelos negros e também pode ser visto como uma forma de transgressão, visto que personagens negros abandonam várias questões quando criam a consciência racial.
“A identidade negra opera com quatro conceitos tensionados: atribuição, interiorização, transgressão e anseio de liberdade. Na infância, te apontam e mostram que você é negro. Depois, você precisa interiorizar essa questão e descobrir o que significa essa nomenclatura. Feito isso, chega o momento da transgressão, quando usamos essa nomenclatura como forma de reivindicar e desenvolver uma consciência racial. Por último, vem o anseio de libertação dessa identidade negra – e é nesse momento que ocorre a tensão. O movimento é duplo porque, ao mesmo tempo que assumo a identidade negra, eu tento me soltar dessas amarras da raça. O jogo de tensão da identidade do negro dura a vida toda", conclui o escritor.