Opinião

[Opinião] 1964: rememorar para não esquecer jamais

Para a reitora Sandra Goulart, a UFMG deve se debruçar sobre o passado para que as novas gerações entendam que a ditadura interrompeu vidas brilhantes, censurou ideias e aprofundou desigualdades

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Protesto de estudantes da Faculdade de Medicina contra o regime militar, em 1977; esta e outras fotos, que compõem galeria sobre a repressão ao encontro nacional que pretendia refundar a UNE, estão disponíveis neste siteFoto: Acervo Cememor | Medicina UFMG

Na data de 31 de março de 1964, foi desencadeado o golpe de Estado responsável pela instauração de uma ditadura que durou oficialmente até 1985 e ainda hoje marca profundamente a vida nacional. Nos 21 anos de sua existência, o regime imposto pelos militares decretou 17 atos institucionais para dar caráter legal à repressão e à violência perpetrada pelo Estado brasileiro. Uma repressão que atingiu os corpos dos cidadãos e cidadãs e mutilou o direito de ir e vir, que impactou a cultura e as artes, a liberdade de imprensa e afetou, em especial, as universidades e sua comunidade, a liberdade de expressão e de cátedra e a produção do pensamento.

O 31 de março não existe para ser comemorado, mas para ser rememorado. Rememorar significa trazer de volta à memória, relembrar. O dever cívico nos obriga, portanto, a relembrá-lo sempre para que jamais nos esqueçamos. Como um dos “bastiões de defesa da democracia” – expressão usada pelo ministro Jorge Messias, da Advocacia Geral da União, em conferência em nossa universidade realizada no último dia 22 de março, para se referir ao importante papel das universidades no enfrentamento da ditadura –, a UFMG tem duplo compromisso histórico com essa memória e com a defesa inarredável da democracia.

O primeiro compromisso está firmado no respeito à nossa comunidade, que foi duramente acuada e vitimada durante o regime autoritário. Tivemos reitores acossados, professores aposentados compulsoriamente, estudantes perseguidos, assassinados e impedidos de se manifestarem, como no emblemático encontro de 1977, que deveria marcar, na sede do Diretório Acadêmico da Faculdade de Medicina, a refundação da União Nacional dos Estudantes (UNE) e acabou com a prisão de centenas de estudantes.

Os alunos da UFMG Gildo Macedo Lacerda, Idalísio Soares Aranha Filho, José Carlos Novaes da Mata Machado e Walkíria Afonso Costa, cuja memória está eternizada em monumento instalado no gramado da Biblioteca Universitária, foram alguns dos jovens que tiveram suas vidas ceifadas pelo autoritarismo. Em novembro do ano passado, a UFMG e a Faculdade de Ciências Econômicas prestaram uma justa homenagem a João Drumond, estudante morto em 1976, nas dependências do DOI-Codi, em São Paulo, em um episódio que ficou conhecido como a Chacina da Lapa.

Episódios como os de 31 de março e de 8 de janeiro, em momentos históricos específicos e com dinâmicas obviamente distintas, trazem em sua raiz um elemento comum que é o assalto à nossa democracia e, consequentemente, o imperativo de preservá-la e defendê-la.

O segundo compromisso é ainda mais desafiador: preservar na lembrança aquilo que não se deve esquecer e manter acesa a chama da democracia. As novas gerações precisam conhecer a fundo o que foi o golpe de 1964 e suas consequências para o país. Precisam também saber dos riscos de rupturas democráticas, como observado em tempos recentes em vários países e também no Brasil. Após um período de relativa calmaria democrática registrado entre a promulgação da Constituição cidadã de 1988 e o início da segunda década do século 21, novas formas de arbítrio têm-se vislumbrado. Não mais o autoritarismo imposto pelos tanques ou pela ponta do fuzil, mas o arbítrio das perseguições judiciais, que também se abateram, sobre as universidades, como na ação, sem fundamento, que culminou, em 2017, no suicídio do reitor Luiz Carlos Cancellier, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), e no episódio da condução coercitiva de oito dirigentes da UFMG – medida declarada inconstitucional pelo STF.

Esses compromissos obrigam a UFMG a se debruçar sobre o nosso passado para que as novas gerações se conscientizem do que foi o golpe de 1964 e entendam que a ditadura interrompeu vidas brilhantes, censurou ideias e aprofundou nossas desigualdades seculares. O conhecimento sobre os meandros do golpe e da ditadura traz a consciência do risco da ruptura democrática e a necessidade de rejeitar todas as formas de arbítrio.

Há pouco mais de um ano, o Brasil sofreu um golpe em sua ainda jovem democracia. A invasão e depredação das sedes dos três poderes, em Brasília, confirmam que o ataque à democracia continua nos assombrando. Episódios como os de 31 de março e de 8 de janeiro, em momentos históricos específicos e com dinâmicas obviamente distintas, trazem em sua raiz um elemento comum que é o assalto à nossa democracia e, consequentemente, o imperativo de preservá-la e defendê-la.

Remontando à conferência de 22 de março, o ministro Jorge Messias trouxe à memória a música Divino maravilhoso, de Gilberto Gil e Caetano Veloso, imortalizada na voz de Gal Gosta. A canção foi um dos grandes hinos da juventude que lutou contra a ditadura nos 1960 e 1970. Diante dos acontecimentos das últimas décadas, caracterizados pelo recrudescimento do arbítrio, a música mantém-se atualíssima. “É preciso estar atento e forte!”

Sandra Regina Goulart Almeida | reitora da UFMG