Opinião

[Opinião] Golpe de 1964 precisa ser lembrado, estudado e ‘remoído’

Professor Rodrigo Patto defende que as novas gerações sejam educadas para valorizar a democracia e desprezar a ditadura; efeméride é tema de seminário que será realizado de 25 a 27 de março

Sessão na Comissão Nacional da Verdade (instalada em 2012), que confirmou o desaparecimento de 200 militantes políticos durante a ditadura
Sessão na Comissão Nacional da Verdade, instalada em 2012 para apurar violações aos direitos humanos ocorridas de 1946 a 1988, incluindo o período da ditadura (1964-1985)Foto: Antonio Cruz | Agência Brasil

O golpe de 1964 completará 60 anos nos próximos dias. Seis décadas parecem uma grande distância, entretanto, aqueles eventos continuam a marcar as nossas vidas. Trata-se, pois, de um passado muito presente. Tal presença tem a ver com o legado negativo persistente da ditadura, que provocou aumento das desigualdades sociais e do autoritarismo estatal, problemas que ainda não conseguimos resolver. Mas essa permanência tem a ver também com o cenário político recente, marcado pela polarização e ascensão da extrema direita ao poder. Nesse quadro, forças de direita autoritárias e conservadoras têm buscado divulgar imagens positivas sobre 1964, na tentativa de convencer o público de que os militares nos salvaram de tenebrosos perigos e nos legaram um país melhor.

O movimento de revalorização da memória do regime militar tornou-se mais grave nos anos do bolsonarismo no poder, quando o próprio capitão usava suas redes (e as da Presidência da República) para divulgar uma memória positiva sobre 1964. Pouco após o início de seu governo, no dia 31 de março de 2019, ele aproveitou a data para exaltar a ditadura e aprofundar sua guerra cultural contra a esquerda, determinando que os quartéis comemorassem o evento como um dia de glória. Nos anos seguintes, Bolsonaro e seus comandantes militares voltaram ao tema diversas vezes, principalmente em 31 de março, sempre insistindo em defender um legado positivo de 1964 que passava pela negação de que se tratou de um golpe originador de uma ditadura; ao contrário, tais eventos foram apresentados como ações democráticas para salvar o país do comunismo e da desordem. Os seguidores da direita autoritária faziam (e fazem) proselitismo semelhante nas redes sociais e mídias digitais, alcançando ampla divulgação.

Um dos desdobramentos dessa politização à direita da história recente foi empurrar os historiadores e demais pesquisadores do tema para o centro da tormenta, tornando-os alvos da extrema direita. É importante registrar que no sistema escolar os efeitos disso foram mais graves, já que muitos professores perderam o emprego devido à perseguição ideológica. Já os historiadores integrantes do sistema universitário raramente perderam o emprego, pelo menos no setor público. Mesmo assim, foram alvos de críticas e de tentativa de desqualificação do seu trabalho, de ameaças nas redes sociais e de ações de censura.

Na mesma medida em que aumentaram os riscos para quem pesquisa a temática da ditadura, cresceu também a nossa responsabilidade acadêmica e cívica. Mobilizar-se contra as ameaças autoritárias passou a ser um imperativo cívico, em defesa da democracia, mas, também, em favor do livre exercício profissional e da historiografia acadêmica. Daí a intensificação da atuação pública dos historiadores que, para além do trabalho habitual nos sistemas de ensino básico e superior, ampliaram o ativismo na mídia tradicional, nas mídias digitais e nas redes sociais, tentando contrapor-se à avalanche de desinformação, fake news, negacionismo e outras formas de distorção do conhecimento.

As versões a respeito de 1964 divulgadas pela direita autoritária e conservadora são inverídicas e inaceitáveis e distorcem a história de maneira flagrante. Por isso, esse passado precisa ser lembrado, estudado, e, certamente, “remoído”, para que as novas gerações não se esqueçam e sejam educadas para valorizar a democracia e desprezar a ditadura. Esses propósitos e convicções animaram pesquisadores e pesquisadoras do Laboratório de História do Tempo Presente (LHTP-Fafich) a organizar o seminário 1964 e a ditadura militar no quadro transnacional: novas perspectivas historiográficas, que busca aproveitar a efeméride de 60 anos do golpe de 1964 não para comemorá-lo – tomando a expressão no sentido de celebração –, mas como oportunidade para discutir questões de grande relevância na história recente e plenas de atualidade.

A ditadura de 1964 desencadeou um ciclo de violência política e social que agravou vários problemas estruturais brasileiros, como a desigualdade de renda, o racismo, o desrespeito aos direitos humanos e a degradação ambiental. 

De fato, o golpe de 1964 é um marco inquestionável, tanto na história brasileira como na da América Latina, já que abriu caminho para a mais longa ditadura da história brasileira, bem como para um ciclo de regimes autoritários assemelhados nos países vizinhos. A ditadura de 1964 desencadeou um ciclo de violência política e social que agravou vários problemas estruturais brasileiros, como a desigualdade de renda, o racismo, o desrespeito aos direitos humanos e a degradação ambiental. E embora ela tenha gerado um surto de grande crescimento industrial, as mazelas econômicas e sociais legadas pela ditadura constituem ainda desafios presentes, que demandam estudo e reflexões orientadas para superá-los, em busca de construir uma sociedade democrática e pluralista.

O seminário pretende ser um espaço para reflexões acadêmicas, mas também um esforço para pensar os desafios da construção democrática no Brasil e na América Latina. O evento vai reunir um grupo de pesquisadores ao mesmo tempo qualificado e plural – do ponto de vista nacional, geracional e de gênero –, cujos trabalhos oferecem contribuições acadêmicas relevantes para debates e reflexões acerca da história da ditadura brasileira. O intento é estimular análises sobre o estado da arte da produção acadêmica brasileira e internacional sobre o tema, sem deixar de contemplar questões clássicas nos estudos sobre ditaduras, e enfatizar duas linhas de abordagem que se encontram na linha de frente da historiografia: pesquisas sobre as conexões transnacionais da ditadura brasileira e estudos focados em agentes sociais anteriormente pouco contemplados, sobretudo mulheres, negros e indígenas.

Serviço: o seminário será realizado de 25 a 27 de março, no auditório Sônia Viegas, na Fafich. Conheça a programação.

Rodrigo Patto Sá Motta | professor do Departamento de História da UFMG