Opinião

[Opinião] Um refúgio para a memória

Inspirado nas reflexões de Pierre Nora e na experiência do Sindifes, bibliotecário-documentalista discute a importância dos lugares de memória para a sobrevivência de movimentos reivindicatórios


Se habitássemos ainda nossa memória, não teríamos necessidade de lhe consagrar lugares (Pierre Nora)

Já faz algum tempo que venho refletindo sobre as várias possibilidades de questionar o ordenamento atual do mundo, principalmente em tempos cada vez mais marcados por uma espécie de ideologia do silenciamento de dialogismos, praticada, em desabrida maneira, no Brasil por uma parcela significativa dos poderes dominantes, ainda que os representantes tenham sido democraticamente eleitos.

Esses devaneios me levam a retomar e a constatar, novamente, a força da expressão “lugares de memória”, que originalmente foi usada pelo historiador francês Pierre Nora para definir os sentidos de determinados espaços e/ou construções que indicam, por sua própria existência, que não há mais memória espontânea. A noção é o ponto central de uma coleção de artigos escritos por Nora no período de 1984 a 1992. O ensaio Entre memória e história: a problemática dos lugares, publicado no primeiro dos três volumes da obra Les lieux de mémoires, foi traduzido, no Brasil, por Yara Aun Khoury e veiculado no periódico brasileiro Projeto História, da PUC de São Paulo, em 1993.

O ensaio articula-se da seguinte forma: problematiza o fim da história-memória, constata o advento da memória tomada como história e, por fim, indica uma nova perspectiva para pensar os lugares de memória como agenciadores de outro fazer da História. É interessante recuperar trecho da explanação do teórico no qual se percebe, inclusive, o tom poético de sua argumentação:

“Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento de que não há memória espontânea, de que é preciso criar arquivos, de que é preciso manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas, porque essas operações não são naturais. Assim, a defesa, pelas minorias, de uma memória refugiada sobre focos privilegiados e enciumadamente guardados nada mais faz do que levar à incandescência a verdade de todos os lugares de memória. Sem vigilância comemorativa, a história depressa os varreria. São bastiões sobre os quais se escora. Mas se o que eles defendem não estivesse ameaçado, não os teria, tampouco, a necessidade de construí-los. Se vivêssemos verdadeiramente as lembranças que eles envolvem, eles seriam inúteis. E se, em compensação, a história não se apoderasse deles para deformá-los, transformá-los, sová-los e petrificá-los, eles não se tornariam lugares de memória. É esse vai-e-vem que os constitui: momentos de história arrancados do movimento da história, mas que lhe são devolvidos. Não mais inteiramente a vida, nem mais inteiramente a morte, como as conchas na praia quando o mar se retira da memória viva” (NORA, 1993, p. 13).

Penso que esse “insólito” operador conceitual, de acordo com a adjetivação conferida por Paul Ricoeur, em 2007, pode ajudar a observar, na nossa inserção como integrantes do segmento dos servidores técnico-administrativos em Educação na comunidade universitária da UFMG, a relação do existir, da sobrevivência e da manutenção de lugares onde a memória se cristaliza e se refugia.

Esse lugar-refúgio, nos tempos obscuros que atravessamos, é estratégico, pois nos auxilia, talvez, a articular memórias em esfacelamento.

O Sindicato dos Trabalhadores nas Instituições Federais de Ensino (Sindifes) criou, em 2010, seu Centro de Memória, na própria sede da instituição, na região da Pampulha, em Belo Horizonte. A então Diretoria Executiva Colegiada (biênio 2008-2010) percebeu a necessidade de organização da massa documental acumulada ao longo de quase duas décadas de intensa atividade no movimento reivindicatório no âmbito do ensino superior gratuito brasileiro. O ambiente, que abriga o arquivo e a biblioteca, foi batizado como Centro de Memória Francisca Oliveira da Silva, em homenagem à companheira Chicona. Trabalhadora e militante incansável, ela atuou como psicóloga no Hospital das Clínicas da UFMG até sua aposentadoria. Foi integrante da diretoria do Sindifes na gestão 2008-2010. Faleceu em maio de 2017, deixando um exemplo de paciência, determinação, coragem e companheirismo na luta.

O Centro foi criado para dar visibilidade à importância histórica da entidade no contexto sócio-econômico-cultural do movimento, em particular, e para contribuir com a esfera dos movimentos reivindicatórios brasileiros, especificamente, aqueles atrelados às instituições federais de ensino. À época, todo o empreendimento foi concebido com a valiosa participação das bibliotecárias Anália das Graças Gandini Pontelo e Simone Aparecida dos Santos, que trabalhavam, respectivamente, nas bibliotecas da Fafich e da Farmácia.

A biblioteca do Centro conta com acervo de quatro mil exemplares, disponíveis aos filiados para consulta local e empréstimo domiciliar, constituindo-se, assim, em importante fonte de informação sindical. Vários pesquisadores já se valeram do acervo do Centro de Memória para consubstanciar a produção de suas reflexões, que abrange monografias de graduação, artigos, dissertações, teses e trabalhos de conclusão de cursos de especialização.

Sala do Centro de Memória do Sindifes, criado em 2010
Sala do Centro de Memória do Sindifes, criado em 2010 Vinícius Matias | Sindifes

Essa iniciativa, então pioneira no âmbito dos sindicatos congêneres brasileiros, possibilitou a disseminação de boas práticas de tratamento arquivístico e biblioteconômico e fomentou reflexões sobre a efetividade desses fazeres da Biblioteconomia e Ciência da Informação como estratégias para uma condução mais eficiente das lutas empreendidas pelo movimento em seu cotidiano.

Volto ao ensaio mencionado para concluir que, em alguma medida, ocorre com o Centro de Memória do Sindifes a operação problematizada pelo historiador francês, ou seja, o enraizamento da memória “no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto”.

Esse lugar-refúgio, nos tempos obscuros que atravessamos, é estratégico, pois nos auxilia, talvez, a articular memórias em esfacelamento. O lugar-refúgio construído e abrigado na entidade, que completou, em 2020, sua primeira década, agencia-se na insólita noção de Nora. Assim, “[o Centro de Memória] é um lugar duplo, um lugar de excesso, fechado sobre si mesmo, fechado sobre sua identidade, e recolhido sobre seu nome, mas constantemente aberto sobre a extensão de suas significações”.

Resta desejar, em luta permanente, vida longa a esse lugar-refúgio!

Wellington Marçal de Carvalho: bibliotecário-documentalista, coordena a biblioteca da Escola de Veterinária da UFMG. Doutor em Letras – Literaturas de Língua Portuguesa pela PUC Minas, faz residência pós-doutoral em Estudos Literários na Fale-UFMG