Pesquisa e Inovação

Pesquisadora garimpa fotos que contam uma história 'insurgente' de BH

Premiada pela UFMG, tese faz um contraponto à narrativa hegemônica da capital, em crítica à ‘modernidade colonialista’

Priscila Musa e Isabel Casimira com o álbum físico de suas fotos, que a pesquisadora ajudou a montar
A verdadeira pesquisa afetiva: Isabel Casimira (à direita) celebra a conclusão do álbum físico de suas fotos, cuja produção contou com o apoio da pesquisadora Priscila MusaFoto: Cleiton Gos

No fim do século 19, quando se cravou que a nova capital de Minas Gerais seria erguida no vale onde até então existia o arraial de Curral del Rei, uma comissão construtora foi designada para tocar os trabalhos. Uma curiosidade que poucos sabem é que, além de vários engenheiros, arquitetos, tesoureiros, pedreiros, amanuenses e marceneiros, essa comissão contou com um gabinete fotográfico oficial, cuja missão era fazer algum registro do antigo arraial, conforme ele era botado abaixo, e promover os modernos projetos arquitetônicos que iam sendo erguidos em seu lugar. O objetivo era produzir fotos que fossem capazes de exaltar a grandiosidade do projeto, lançar sobre ele uma perspectiva otimista e atrair imigrantes brasileiros e de outros países para a nova cidade, que se queria cosmopolita e vinculada ao futuro global.

Sob essa perspectiva, as milhares de fotografias produzidas pelo gabinete – que atuou a partir de 1894 – acabaram por legar ao futuro uma história enviesada: se por um lado essas fotos retrataram a contento as novas construções, a pompa e a circunstância das situações oficiais e as personagens que foram se destacando no âmbito positivista desse afã construtor, por outro elas acabaram obliterando questões mais subjetivas relacionadas à vida das pessoas que já viviam no lugar – pessoas que, de diferentes formas, acabaram tendo as suas vidas atropeladas pelo trator da história. 

Foi com o intuito de recuperar a memórias dessas “existências que teimam em permanecer”, “potências de instabilidade”, que a arquiteta Priscila Mesquita Musa defendeu no ano passado a tese Quem vê cara não vê ancestralidade: Arquivos fotográficos e memórias insurgentes de Belo Horizonte no Programa de Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo (NPGAU) da UFMG.

Para dar forma ao trabalho, Priscila começou a procurar, nessas fotografias, enfoques ou narrativas visuais que confrontassem essa “vertente amplamente difundida da história enaltecedora do Bello Horizonte e seus homens ilustres” (o itálico é usado pela autora). “O projeto de modernidade colonialista aparentemente vitorioso em muitas das fotografias que apresento nesse percurso e nas publicações mais conhecidas é de origem e natureza incompletas, falho, é a história mal contada, o filme fotográfico que não foi possível revelar. Belo Horizonte expandiu-se conformando uma vasta Região Metropolitana de maneira que seria factível inferir, por sua proporção espacial densamente conformada por periferias, vilas, favelas, ocupações, que Belo Horizonte não é uma cidade planejada – através da comparação entre a extensão da área do plano original, e mesmo da distribuição proporcional da população que o ocupa, e todo o resto da metrópole (mesmo que tenha havido subplanos e projetos)”, ela anota. “Essa cidade, como tantas outras, é habitada por diferentes mundos que estão por todos os lados, visíveis e invisíveis, ocupam as imagens, os tempos e os espaços desafiando a monocultura humana extensiva.”

Contra a 'normatividade visual'
Nesse contexto, Priscila buscou imagens que pudessem, em seus planos secundários, contar essa outra história da nova capital de Minas Gerais – uma história divergente da história ainda hoje hegemônica, que associa muitas vezes acriticamente progresso e predação. Sua busca foi por imagens capazes de se insurgirem contra essa “normatividade visual” com que Belo Horizonte é apresentada na oficialidade da sua história de origem, modulação que, a rigor, acabou atravessando seus quase 130 anos de história – uma normatividade que, ao naturalizar a exclusividade do ponto de vista das forças dominantes, produziu e segue ainda hoje produzindo invisibilidades.

Para delimitar o corpus de sua investigação, a pesquisadora vasculhou dois museus de destinação pública – o Museu Histórico Abílio Barreto e o Museu da Imagem e do Som de Belo Horizonte – e oito arquivos: o Arquivo Público da Cidade de Belo Horizonte, o Arquivo Público Mineiro, o Sistema de Pesquisa de Acervo da Comissão Construtora da Nova Capital de Minas, o Laboratório de Fotodocumentação Sylvio de Vasconcellos, da UFMG, o Arquivo Nacional, a Biblioteca Digital Luso Brasileira – que reúne o acervo da Biblioteca Nacional do Brasil e da de Portugal –, a Brasiliana Fotográfica – formado por acervos da Fundação Biblioteca Nacional e do Instituto Moreira Salles – e o Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas.

Na esquerda, o processo de pesquisa de Priscila Musa junto a Júlia Ferreira, matriarca do Quilombo dos Luízes, que na foto mostra um dos seus livros de fotos; na direita, o processo de pesquisa com Valéria Borges, referência comunitária da Pedreira Prado Lopes

À esquerda, o processo de pesquisa de Priscila Musa com Júlia Ferreira, matriarca do Quilombo dos Luízes, que mostra um dos seus livros de fotos; à direita, o processo de pesquisa com Valéria Borges, referência comunitária da Pedreira Prado Lopes Fotos: Reprodução de tese

Movimentos sociais
O doutorado de Priscila dá continuidade a um trabalho iniciado em seu mestrado, que resultou na dissertação Movimentos imagem, também defendida na UFMG e publicada em 2015. Na ocasião, Priscila pesquisou fotografias dos movimentos sociais de Belo Horizonte de 2000 a 2015, valendo-se em parte de sua própria experiência de engajamento. “Foi uma investigação acerca da potência expressiva da imagem enquanto desestabilizadora de espaços e tempos socialmente estabelecidos e da sua capacidade de redistribuir o sensível, a partir da análise das relações políticas que se estabelecem entre os seus agentes – fotógrafa, fotografado, espectador e câmera”, ela explica.

Naquela época, a busca já era por imagens das pessoas que se opuseram e resistiram aos contínuos processos de remodelação e redesenho do espaço público, às demolições de edificações populares e históricas, aos apagamentos sociais, às remoções de vilas e favelas, às expulsões de populações locais, à supressão de vegetação natural; pessoas ligadas às ocupações urbanas estabelecidas paralelamente aos ditames oficiais, aos bairros populares erguidos informalmente pelos próprios interessados, aos territórios sagrados, aos espaços comuns partilhados, às comunidades quilombolas, aos espaços de convívio popular. Contudo, já naquele momento, ao investigar os arquivos da cidade, a pesquisadora percebeu que a maior parte das imagens reunidas ali praticamente não retratava essas pessoas e situações.

No doutorado, Priscila voltou ao desafio e tentou outra vez avançar nessa pesquisa, desta vez por meio da busca, nos sistemas dos arquivos, por uma ampla gama de palavras-chave, tais como movimento, movimento social, movimento político, manifestação, protesto, revolta, revolução, jornada, levante, passeata, marcha, greve, paralisação, assembleia, ato, sindicato, piquete, barricada, populares, população, operários, operárias, trabalhadores, trabalhadoras, negra, negro, preta, preto, criança, infância, indígenas, índio, mulher, lésbica, gay, travesti, homossexual, rio, árvore, floresta, serra, festa, carnaval, congado, terreiro, quilombo, favela, periferia, luta, resistência, denúncia, desmatamento, demolição, remoção, despejo – e tantas outras, pois a lista só foi crescendo. Ainda assim, para a frustração da pesquisadora, o mais comum era que as suas pesquisas retornassem como alguma variação da mensagem: “A busca não retornou nenhum resultado.” Havia um impasse.

Cem mil fotos, uma de cada vez
A verdade é que as fotos não estavam marcadas com esse tipo de palavra-chave (tag), o que mais uma vez reitera a invisibilidade de certas narrativas tratada na tese. A pesquisadora precisava encontrar uma saída. “Quando compreendi as limitações da pesquisa feita através de palavra-chave com o objetivo de investigar que cidade é essa que se guarda nos arquivos, e com a expectativa de ainda encontrar algum ponto de fuga escondido no fundo da gaveta, perdido em alguma pasta, decidi pesquisar a quase totalidade dos acervos audiovisuais disponíveis para consulta de algumas dessas instituições”, ela conta. 

Traduzindo: Priscila se deu à tarefa hercúlea de analisar, imagem por imagem, cerca de cem mil fotografias e os mais de 500 filmes que ela pôde encontrar nos arquivos que pesquisou. “Visitei as fotografias em diferentes momentos – vi, revi, depois revi de novo muitas delas –, em consultas aos acervos iconográficos dos arquivos e museus que se iniciaram durante o mestrado, em 2013-2015, e se intensificaram em 2017-2021, já no doutorado.”

O aspecto monumental do trabalho chama ainda mais a atenção porque ele foi realizado, em grande parte, durante a pandemia, o  que gerou dificuldades inéditas para quem realizava investigações que envolviam pesquisas de campo. Em razão de todo esse esforço, e da relevância da contribuição que seu resultado oferece, o trabalho venceu o Grande Prêmio de Teses UFMG 2023 na área de Ciências Humanas, Ciências Sociais Aplicadas, Linguística, Letras e Artes, entregue em outubro último; dois meses antes, ele já havia recebido menção honrosa na categoria Arquitetura, urbanismo e design do Prêmio Capes de Tese, que reconhece os melhores trabalhos de conclusão de doutorado de todo o Brasil.

Em seu parecer, os cinco pós-doutorandos da Arquitetura que integraram a comissão de julgamento do prêmio UFMG destacaram a originalidade e o rigor metodológico da investigação. “Ao apontar as omissões e os apagamentos de acervos fotográficos e fílmicos, a pesquisa traz contribuições valiosas para a salvaguarda de um patrimônio imagético da história social e urbana de Belo Horizonte”, escreveram. “Destaca-se o minucioso trabalho gráfico realizado a partir das fontes visuais selecionadas e a atualidade de uma tese que, contestando modelos acadêmicos tradicionais, apresenta alternativas para nossa disciplina de forma consistente e com grande capacidade crítica”, concluíram.

Orientada pela professora Renata Moreira Marquez (à esquerda) no doutorado e no mestrado, Priscila Musa venceu o Grande Prêmio de Teses UFMG 2023 nas humanidades e recebeu menção honrosa no prêmio da Capes por seu trabalho
Orientada pela professora Renata Moreira Marquez (à esquerda) no doutorado e no mestrado, Priscila Musa venceu o Grande Prêmio de Teses UFMG 2023 nas humanidades e recebeu menção honrosa no prêmio da Capes por seu trabalho Foto: Foca Lisboa | UFMG

‘Ativismo investigativo’

A pesquisadora não ficou nisso. Ao notar o peso de como as fotos do gabinete fotográfico da comissão construtora reproduziam o discurso hegemônico, ela concluiu que, se quisesse mesmo perscrutar os sentidos mais íntimos dessa “outra história” da capital mineira, a história insurgente da cidade, precisaria de uma alternativa que se chocasse com elas, que mostrasse o outro lado. O caminho para escapar dessa emboscada armada pelas fotografias oficiais (“emboscada” é o título da primeira das quatro partes do trabalho) foi partir em busca de acervos pessoais dos moradores mais antigos. 

Ao fim, essa busca levou a que a tese de Priscila terminasse assinada “com” Isabel Casimira, Júlia Ferreira da Silva, Mana Coelho e Valéria Borges, mulheres que compartilharam com a autora não apenas seus monumentais acervos fotográficos pessoais e comunitários relativos à vida mais periférica e ligada à resistência de Belo Horizonte, mas também, como Priscila escreve em sua tese, as suas “cosmovisões de mundo”.

Isabel Casimira é rainha conga do Reinado de Nossa Senhora do Rosário, manifestação religiosa e cultural afrodescendente fortemente presente em Minas Gerais e em Belo Horizonte; Júlia Ferreira é uma matriarca do Quilombo dos Luízes, situado na região do bairro Grajaú; Mana Coelho é uma fotógrafa que se especializou na documentação de atos, greves, passeatas e manifestações relacionadas à vida dos periféricos de Belo Horizonte; Valéria Borges é uma antiga referência comunitária da Pedreira Prado Lopes, a mais antiga favela da cidade. 

Reunidas e amplamente discutidas no trabalho, as fotos dessas quatro mulheres dão visibilidade a uma outra cidade – preta, pobre, resistente, bonita, subjetiva, feliz, sofrida, humana, bem diferente da objetividade da branquitude masculina e de seus discursos oficiais, com seus ternos e caras fechadas.

De fato, nas primeiras páginas da tese, Priscila dedica a pesquisa – que ela demarca não apenas como uma investigação ativista, mas efetivamente como “ativismo investigativo” – “a todas as pessoas que desafiaram os preceitos sociais, morais, éticos, estéticos e intelectuais de seu tempo, abriram os caminhos e tornaram as nossas vidas possíveis”. 

Desenvolvido sob a orientação da professora Renata Moreira Marquez, o trabalho está dividido em quatro partes: as duas primeiras tratam dos resultados da pesquisa empreendida nos arquivos e museus, e as duas últimas tratam do resultado da pesquisa feita nos arquivos pessoais, íntimos e comunitários que foram compartilhados por essas quatro mulheres com a pesquisadora.

Na galeria que encerra esta matéria, o Portal UFMG reúne dez dessas imagens com referências à descrição que é feita delas, pela pesquisadora, no trabalho. Os textos integrais da dissertação e da tese de Priscila Musa, em que constam todas as imagens colecionadas e analisadas, estão disponíveis na Biblioteca de Teses e Dissertações da UFMG.

Tese: Quem vê cara não vê ancestralidade: arquivos fotográficos e memórias insurgentes de Belo Horizonte
Autora: Priscila Mesquita Musa
Programa: Arquitetura e Urbanismo
Orientadora: Renata Moreira Marquez

Dissertação: Movimentos imagem
Autora: Priscila Mesquita Musa
Programa: Arquitetura e Urbanismo
Orientadora: Renata Moreira Marquez

Fotos da tese de Priscila Musa

Ewerton Martins Ribeiro