Pesquisa e Inovação

Pesquisadores da UFMG identificam em veneno de aranha potencial fármaco contra a disfunção erétil

Estudo com toxina da espécie ‘Phoneutria nigriventer’, uma das mais venenosas do Brasil, resultaram em peptídeo cuja ação pode favorecer a ereção

Aranha armadeira: pesquisa envolvendo o aracnídeo resultou no potencial fármaco
Aranha armadeira: pesquisa envolvendo o aracnídeo resultou no potencial fármaco Foto: Rodrigo Tetsuo Argenton (CC BY-SA 4.0)

A Phoneutria nigriventer, pertencente à família dos ctenídeos, é uma aranha encontrada em países da América do Sul, entre os quais, o Brasil. Conhecida popularmente como aranha da bananeira ou armadeira – nome derivado de sua ação de ataque, na qual mantém as patas dianteiras erguidas –, é também uma das espécies mais tóxicas conhecidas em todo o mundo. Seu veneno é capaz de causar, especialmente em homens jovens, uma ereção involuntária e dolorosa, conhecida como priapismo. 

Essa toxina da aranha, identificada por pesquisadores da Fundação Ezequiel Dias (Funed), embora perigosa, pode resultar em um novo medicamento. Ao buscar compreender, do ponto de vista farmacológico, os mecanismos que geram o priapismo ocasionado pelo veneno da aranha armadeira, pesquisadores da UFMG, liderados pela professora Maria Elena de Lima, aposentada do Departamento de Bioquímica e Imunologia do ICB,  em estudo iniciado há quase 20 anos utilizando a toxina, desenvolveram em laboratório uma molécula sintética com propriedades promissoras para o desenvolvimento de fármaco inovador e seguro para tratar a impotência sexual. Até o momento, o peptídeo, batizado de BZ371A, já gerou 22 patentes internacionais e nove aplicadas. 

“É uma pesquisa inspirada pela nossa biodiversidade, que começa com o estudo do veneno de uma aranha e está próxima de gerar um possível medicamento. Isso ajuda a demonstrar por que a nossa fauna deve ser preservada: ela é uma fonte inesgotável de moléculas bioativas, e não conhecemos nem 1% desse potencial. Nosso trabalho, que é de ciência básica, busca identificar atividades biológicas de interesse nos venenos e detectar potenciais modelos de fármacos para uma ampla gama de doenças”, afirma Maria Elena de Lima.

O candidato a fármaco para impotência sexual, aprovado recentemente na fase 1 de testes, tem o potencial de atender a homens com disfunção erétil que, por diferentes motivos, não podem fazer uso dos medicamentos hoje disponíveis no mercado. Autorizada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), a primeira etapa de testes clínicos já provou que o composto não é tóxico para humanos. Em teste-piloto, realizado em homens e mulheres, os pesquisadores observaram que a aplicação tópica do BZ371A resulta na vasodilatação e no aumento do fluxo sanguíneo local, independentemente de qualquer outro estímulo, facilitando a ereção peniana. Esses resultados indicam que o BZ371A é forte candidato a fármaco eficaz para o tratamento da disfunção sexual.

Atualmente, os remédios orais disponíveis para tratar a condição – entre os quais, os conhecidos Viagra e Cialis – pertencem a uma classe de medicamentos que funciona para 70% dos pacientes. Os outros 30%, como homens hipertensos ou com diabetes grave, têm alguma contraindicação para o uso desses remédios, por conta de seus riscos e efeitos colaterais – como hipotensão, desmaio e dor de cabeça – provenientes de exposição sistêmica. Agora, a Biozeus Biopharmaceutical, empresa que adquiriu a patente do potencial fármaco, prepara-se para dar início aos ensaios clínicos da fase 2, em que o BZ371A será testado em homens prostatectomizados com disfunção erétil.

Diretor executivo da Biozeus, empresa que assumiu a patente e o desenvolvimento do fármaco, Paulo Lacativa afirma que a UFMG é uma das três universidades brasileiras com mais projetos com qualidade na área de produção de medicamentos. “Como empresa que abraçou esse projeto, temos alguns pontos a destacar. O primeiro deles é que esta talvez se torne a primeira vez em que uma descoberta da universidade brasileira resulta numa medicação que seja desenvolvida para todo o mundo. E acreditamos que esse caso bem-sucedido, conduzido por brasileiros no Brasil, com repercussão mundial, pode ser capaz de mudar todo o ecossistema de inovação em fármacos no país”, projeta Lacativa.

Origens do estudo
Atualmente professora voluntária na UFMG e docente e pesquisadora da Faculdade de Saúde da Santa Casa de Belo Horizonte, Maria Elena de Lima explica que, inicialmente, o estudo focou em uma molécula extraída do veneno purificada por pesquisadores da Fundação Ezequiel Dias (Funed). Liderada pelo professor Carlos Diniz, orientador de mestrado de Maria Elena na UFMG, a equipe já estudava, há longo tempo, o veneno da aranha armadeira.

Maria Elena: trabalho iniciado há quase duas décadas
Maria Elena: trabalho iniciado há quase duas décadas Foto: Comunicação Santa Casa BH

Maria Elena conta que o trabalho com a toxina de aranha, que resultou posteriormente nesse candidato a fármaco, teve início na tese de doutorado da pesquisadora Kenia Pedrosa Nunes, defendida, em 2008, no Programa de Pós-graduação em Fisiologia e Farmacologia. "A pesquisa, que investigava a atividade da toxina da Phoneutria nigriventer na função erétil, demonstrou, farmacologicamente, qual era o efeito por trás do priapismo”, recorda Maria Elena. Embora o veneno cause ereção sem qualquer estímulo sexual, a condição não é desejável. “O priapismo é uma ereção prolongada e dolorosa, que pode levar à necrose do pênis”, alerta. 

Por meio da pesquisa, explica a pesquisadora, foi identificada a molécula que poderia servir como modelo para o possível desenvolvimento de um remédio para disfunção erétil. Nessa fase do trabalho, destaca a professora, foi fundamental a participação de Carolina Nunes da Silva, durante seu doutorado no Programa de Pós-graduação em Bioquímica e Imunologia da UFMG. O estudo, que investigou pela primeira vez a atividade do peptídeo sintético inicialmente batizado como PnPP-19, base das pesquisas atuais, foi premiado como a melhor tese defendida no programa em 2017. 

“Carolina trabalhou com uma molécula que representa apenas uma pequena parte da toxina, obtida anteriormente, por estudos in silico, pelo grupo do professor Paulo Beirão [atual presidente da Fapemig] e indicada como a região mais imunogênica da substância. Com base nesse trabalho, sintetizamos essa molécula e passamos a experimentá-la em camundongos e ratos, para verificar se ela teria o mesmo efeito da molécula original, ou seja, a toxina da aranha. Após os testes in vitro, ou seja, no corpo cavernoso isolado dos camundongos, bem como nos animais anestesiados, nós observamos que essa molécula, bem menor e não tóxica, causava ereção nesses animais”, afirma Maria Elena.

Após essa fase, os pesquisadores se detiveram sobre o peptídeo PnPP-19, derivado da toxina, mas sintetizado em laboratório. Para surpresa da equipe, segundo Maria Elena, a molécula manteve a capacidade de potencializar a função erétil, situação observada tanto nos testes em tecidos isolados quanto naqueles feitos em ratos e camundongos anestesiados. Por meio da formulação de um gel, aplicado na região inguinal do camundongo, os pesquisadores testaram ainda o efeito do composto quando administrado com outros medicamentos hoje utilizados, como o Viagra. “Os testes demonstraram que a administração conjunta potencializava o efeito na ereção apresentada por esses animais”, diz.

Ingresso da iniciativa privada
Após esses resultados, considerados bastante promissores, o peptídeo foi patenteado pela Coordenadoria de Transferência e Inovação Tecnológica (CTIT) da UFMG, órgão responsável por gerenciar as ações de transferência tecnológica da Universidade. Foi nessa fase do processo que a Biozeus, empresa de biotecnologia brasileira responsável pela conexão entre a pesquisa desenvolvida na Universidade e a indústria farmacêutica, conheceu o estudo e manifestou interesse pela patente. 

“A Biozeus se interessou, e foi feita a transferência da patente do peptídeo para a empresa, que batizou o composto de BZ371. A empresa, então, fez uma parceria com a Universidade, adquiriu a patente e, ao mesmo tempo, encomendou testes do peptídeo em vários laboratórios do mundo, uma exigência para que o composto fosse validado nos testes pré-clínicos. Esse peptídeo passou por todos os testes, não demonstrando nenhuma toxicidade, e, o mais importante, propiciou o desenvolvimento de um composto para aplicação tópica. Todos esses testes ajudaram a demonstrar que o peptídeo, assim como a toxina, libera o óxido nítrico, um neuromediador comum e fundamental no processo da ereção. Após a administração do peptídeo, há um aumento considerável da liberação desse óxido nítrico, que leva à dilatação do corpo cavernoso e a uma consequente ereção”, explica Maria Elena.

O diretor executivo da Biozeus, Paulo Lacativa, explica o papel assumido pela empresa na cadeia de desenvolvimento do candidato a fármaco. “Nós temos três atores nesse caminho: o primeiro é o pesquisador, que investiga e descobre. Isso geralmente – não só no Brasil mas no mundo inteiro – ocorre na universidade. Nesse caso, a equipe liderada pela professora Maria Elena conseguiu determinar muito bem o mecanismo de ação e o funcionamento do peptídeo. O segundo ator é o desenvolvedor, papel assumido por nós. É o desenvolvedor que leva o que está sendo descoberto na universidade a uma indústria farmacêutica. Esse terceiro ator é justamente aquele que vai produzir e comercializar esse produto para a sociedade”, conta.

Após assumir a patente do composto e nomeá-lo BZ371A, a Biozeus realizou testes preliminares pendentes e apresentou o trabalho à Anvisa, a fim de solicitar a autorização para o teste clínico de fase 1. Essa fase foi precedida de experimento-piloto, realizado tanto em homens quanto em mulheres. “Essa etapa demonstrou que o peptídeo aplicado topicamente não teve nenhum efeito colateral detectável pelos testes bioquímicos ou de pressão arterial. Tanto em homens como em mulheres, ele provocou aumento do fluxo sanguíneo na região inguinal. Esse teste foi muito importante para demonstrar que o peptídeo tinha efeito em seres humanos – vale lembrar que não é sempre que o efeito observado em animais se repete no ser humano”, observa Maria Elena.

Estudos clínicos 
Os estudos clínicos, detalha o diretor da Biozeus, dividem-se em três fases, antes de chegar ao registro do fármaco. “A primeira avalia os efeitos do possível remédio no organismo humano. Nessa etapa, aplica-se a medicação e avaliam-se seus efeitos no corpo e sua presença na corrente sanguínea”, diz. No caso do BZ371A, os testes da fase 1 foram feitos na Azidus Brasil, em São Paulo, com o objetivo de verificar se, de fato, o composto não apresentava nenhuma toxicidade para o ser humano. 

“Os resultados dessa fase, de fato, não demonstraram nenhuma toxicidade do composto para o ser humano. Isso já é um grande avanço, porque são pouquíssimos candidatos a fármacos que chegam a essa fase”, celebra Maria Elena. “Uma propriedade bastante positiva dessa solução, que foi eficaz e que atesta sua segurança, é que a ação é local, não provocando alterações sistêmicas. Ou seja, ela só tem bons efeitos locais, com a ausência de efeitos sistêmicos negativos. Esse estudo de fase 1, aprovado pela Anvisa, atestou o perfil de segurança da medicação”, completa Paulo Lacativa.

Testes em homens prostatectomizados
Recentemente, a Biozeus solicitou à Anvisa a aprovação para a fase 2 dos testes, que também serão feitos em Belo Horizonte. Nessa etapa, os ensaios serão em homens prostatectomizados, ou seja, que fizeram cirurgia para retirada da próstata, intervenção que, em grande maioria, leva à disfunção erétil. Em relação à fase 2, Paulo Lacativa afirma que os desenvolvedores querem conhecer “a relação de eficácia da medicação no organismo do paciente”. Nessa etapa, complementa Maria Elena, será testado o potencial do remédio, ao comparar o efeito em indivíduos saudáveis com o gerado nas pessoas prostatectomizadas. 

A pesquisadora explica ainda que, na retirada da próstata, cortam-se vários terminais nervosos. Segundo Paulo Lacativa, em razão do estigma que cerca as questões sexuais, muitos homens optam por protelar a operação, o que prejudica o tratamento de tumores e outras doenças que atingem o órgão. “A medicação, se bem-sucedida, deve, inclusive, favorecer o tratamento do câncer de próstata”, assevera. Na etapa seguinte, a fase 3, os testes serão ampliados e poderão ser feitos em hospitais. Apenas depois disso, o fármaco poderá ser validado como medicamento. 

Uso tópico, vantagens e perspectivas
Os pesquisadores destacam ainda as vantagens de um medicamento para uso tópico. “Os testes, até o momento, já demonstraram que o composto funciona com a aplicação de uma quantidade mínima e sem nenhuma toxicidade, já que praticamente não é detectado na corrente sanguínea. A grande vantagem é que a aprovação de medicamentos tópicos costuma ser bem mais rápida, em razão da menor possibilidade de efeitos colaterais adversos. Além disso, o candidato a fármaco já demonstrou que não gera nenhum efeito colateral detectado, mesmo quando injetado em altas doses”, ressalta Maria Elena.

Outro ponto benéfico é a possibilidade de uso por homens que não podem se medicar com as terapias hoje disponíveis. Na etapa preliminar, de testagem em animais, o composto foi utilizado em animais diabéticos, hipertensos e idosos. “Nós aplicamos em animais desses três modelos e observamos recuperação muito boa da função erétil", informa a professora. Há expectativa que o futuro fármaco ocupe uma lacuna hoje deixada pelos medicamentos existentes no mercado.

No estudo de fase 1, também ficou atestada a segurança da aplicação tópica do BZ371A em mulheres. Esse dado abre a possibilidade para o desenvolvimento de uma medicação para o tratamento da disfunção sexual feminina. Segundo Paulo Lacativa, cerca de 40% das mulheres são afetadas por algum tipo de disfunção sexual, e muitas delas não encontram tratamento adequado disponível no mercado. “O aumento do fluxo sanguíneo local e da vascularização foi comprovado em estudos anteriores e pode ser uma oportunidade a ser explorada pela Biozeus em futuro próximo", adianta.

Hugo Rafael