'Antropófaga', arte indígena apropria-se da linguagem ocidental para descolonizá-la
Em roda de conversa no Festival de Inverno, criadores dizem que as novas tecnologias são aliadas na construção de suas próprias narrativas
A história indígena brasileira pós-invasão europeia pode ser dividida em três grandes momentos: o tempo dos primeiros contatos com o colonizador – o “momento do extermínio” –, o tempo da integração via submissão, em que se tentava “fazer com que os povos indígenas deixassem suas culturas e suas línguas para integrarem a população nacional como mão de obra”, e o pós-Constituição de 1988, em que se passou a postular a garantia de direitos para os povos indígenas.
Essa análise foi feita por Naine Terena de Jesus, doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), na roda de conversa Ecos e desvios do modernismo, realizada na noite de terça-feira, 27 de julho, no Festival de Inverno UFMG.
“Estamos agora num quarto momento, que é o momento do avanço de uma autogestão do pensamento indígena, com base em todas as tecnologias e ferramentas dos colonizadores dominadas a partir da década de 1990, com a ascensão da Internet, e colocadas a favor da luta dos indígenas e de sua visibilidade. É o momento em que tomamos consciência de que podemos falar por nós mesmos sem a necessidade do intermédio ou da mediação de outra fala, a não ser em casos em que essa mediação é feita de forma coletiva ou autorizada”, explica Naine, que também é mestre em artes pela Universidade de Brasília (UnB) e formada em Comunicação Social pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT).
Com a mediação do professor indígena, pesquisador e ceramista Nei Leite Xacriabá, Naine Terena conversou com o artista plástico Denilson Baniwa sobre as possibilidades de pensar a arte indígena contemporânea à luz do projeto modernista brasileiro. Segundo Naine, todo o movimento que ocorre hoje em torno da arte indígena situa-se na esteira desse “processo muito longo e duradouro” de resistência indígena.
O outro lado do modernismo
Denilson buscou demarcar, de saída, a superficialidade do contato travado pelos modernistas com os indígenas brasileiros, lembrando, em tom irônico, que, em busca de um suposto Brasil “profundo”, os modernistas fizeram uma expedição a Minas Gerais, estado também do Sudeste brasileiro. “Eu até entendo, compreendo – não gosto, não concordo, mas entendo – que, naquela época, Mário de Andrade, Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade não se dessem a possibilidades de uma interlocução mais profunda com os indígenas. O que eu não compreendo é que, em 2021, ainda haja pessoas que queiram capturar e se apropriar de referências indígenas como se estivessem no século passado”, criticou.
A partir desse mote, o artista plástico – um dos cinco selecionados para o prêmio Pipa 2021 e vencedor da edição 2019 – situou em que contexto se dá, considerando o legado modernista, a arte produzida hoje por ele e por outros artistas indígenas. “O que ecoa para mim do modernismo – o paulistano, principalmente – é a possibilidade de retomada de um pensamento antropofágico indígena, no sentido de que hoje a gente ganha prêmios, está na academia e participa dos debates de uma maneira igualitária”, explicou. “De certa maneira, é o que se pensava lá na antropofagia do Oswald de Andrade; só que agora a gente está em uma autofagia, comendo de dentro do nosso território e construindo as nossas narrativas de lá".
Denilson – que se considera um artista antropófago, pois se apropria de linguagens ocidentais para descolonizá-las em sua obra – lembrou que, se a arte indígena que é produzida hoje se vale do conhecimento e das ferramentas da modernidade, isso só ocorre porque, em muitos casos, já não é mais possível recuperar essa arte indígena em sua perspectiva original, dado o apagamento perpetrado pela violência colonial. “Se o pessoal vai comemorar o centenário do modernismo, também caberia comemorar os tantos mil anos do modernismo indígena”, provocou.
“Estamos vivendo um momento em que o Brasil, e a parte do mundo que se interessa pelo Brasil, está pensando sobre esse modernismo brasileiro, essa arte brasileira, e tudo o que está em torno do centenário. Contudo, como indígena, eu estou pensando muito mais nos milhares de anos de presença da arte indígena no território brasileiro”, disse, lembrando como esse apagamento ainda tem reflexos nos dias de hoje, sem que haja uma contrapartida suficiente para a sua compensação. “Daí a importância de se pensar uma arte indígena que não é mais a tradicional, porque não se pode mais voltar ao tradicional, mas uma arte indígena que utiliza as ferramentas e os conhecimentos da modernidade”, contextualizou. “Se o modernismo [brasileiro] nasce a partir das referências dos indígenas capturadas pelos modernistas, então quer dizer que a gente já era modernista antes de essa galera se dizer modernista”, finalizou, em tom de provocação.
“Essa é uma discussão que eu também tenho tentado fazer”, acrescentou Nei Leite Xacriabá, em uma de suas intervenções. “A gente sabe que a nossa arte é artivista, visa contribuir para levar informações sobre a nossa realidade para os não indígenas”, disse. “Hoje nós estamos ocupando esse espaço de também falar, de também colocar a nossa opinião. Sabemos que, durante muito tempo, falaram por nós e, ao falarem por nós, cometeram uma série de equívocos. Agora é um momento muito importante, porque a gente vê vários artistas indígenas falando da sua cultura e colocando o seu ponto de vista; isso tem contribuído para as pessoas conhecerem a nossa realidade. E tem contribuído para tentarmos quebrar esses preconceitos”, pontou.
O vídeo da roda de conversa Ecos e desvios do modernismo pode ser assistido no canal da Diretoria de Ação Cultural da UFMG (no link abaixo, a partir de 2’28’’29’’’).
Conheça o trabalho em cerâmica de Nei Leite Xakriabá, a produção artística de Denilson Baniwa e as reflexões de Naine Terena sobre a arte feita por indígenas.