Ensino

‘Sem terra, sem canto', alerta liderança Maxakali em aula inaugural de formação transversal

Atividade reuniu promotores, representantes de povos originários e professores para discussão sobre clima e apresentação de resultados do projeto Hãmhi

Representantes Tikmũ’ũn da família Maxakali estiveram presentes em aula que abriu Formação Transversal em Agricultura Familiar e Agroecologia
Representantes Tikmũ’ũn da família Maxakali estiveram presentes em aula que abriu Formação Transversal em Agricultura Familiar e Agroecologia Foto: Jebs Lima | UFMG

"Esse projeto tem que continuar porque é uma educação. É uma aula. Ensina a nossa criança. Aprende a plantar muda, sementes e também cantar. Se não tem o mato, nós não temos o canto. Sem terra, não tem reflorestamento. Não tem educação diferenciada. Não tem alimento saudável." Esse apelo foi feito pelo representante do povo Tikmũ’ũn/Maxakali, liderança Israel Maxakali, durante a abertura do seminário e aula inaugural da Formação Transversal em Agricultura Familiar e Agroecologia, com o tema Justiça ambiental, povos originários e educação: a experiência do projeto Hãmhi-terra viva, que ocorreu na tarde desta terça-feira, 9 de abril, no auditório da Reitoria.

Conhecidos como Maxakali, os Tikmũ’ũn são povos falantes da língua Maxakali, classificada no tronco linguístico Macro-Jê e a única hoje falada entre as demais da família Maxakali. São cerca de 2,8 mil pessoas, com alta porcentagem de crianças, distribuídas em quatro terras indígenas em Minas Gerais, onde o projeto Hãmhi é desenvolvido pelo Centro de Apoio Operacional do Meio Ambiente (Caoma) desde o início de 2023: TI Maxakali – Água Boa, em Santa Helena de Mina, Pradinho, em Bertópolis, Aldeia Verde, em Ladainha, Cachoeirinha e Aldeia-Escola Floresta, ambas em Teófilo Otoni.

Na mesa de abertura, (da dir.) Israel Maxakali, Vanessa Tomaz, Douglas Krenak e Edmundo Netto Jr
Na mesa de abertura, da direita para a esquerda, Israel Maxakali, Vanessa Tomaz, Douglas Krenak e Edmundo Netto Jr.Foto: Jebs Lima | UFMG

Hãmhi (pronuncia-se raunrri) terra-viva tem o principal objetivo de formar agentes agroflorestais Tikmũ’ũn que implementarão quintais agroflorestais e áreas de recuperação ambiental em um território de 6,4 mil hectares. Se vencerem o desafio de reflorestar uma área da Mata Atlântica que hoje parece um pasto, os Maxakali poderão voltar a produzir seus alimentos e conviver em harmonia com a floresta. "Hoje, nós trabalhamos muito com Hãmhi, igual formiguinha. Trabalha muito. Quando voltar a mata, ela vai plantar sozinha. Vento vai levar semente longe, pássaro vai comer fruta e plantar e nós vamos só ajudar", relatou Israel, ao resumir seu sonho em relação ao projeto.

Educação inclusiva e responsável
Na abertura da conferência, a reitora Sandra Regina Goulart Almeida endossou o pensamento de Israel Maxakali ao ressaltar que somente com o respeito ao meio ambiente será possível haver uma educação mais inclusiva e responsável. A dirigente falou da mudança na mentalidade necessária que ocorre por meio da troca de sabedorias na formação transversal. "Estamos correndo o risco de perder o planeta por irresponsabilidade. Temos que estar juntos nessa luta que é minha, nossa e dos povos indígenas, com os quais aprendemos tanto e queremos continuar aprendendo", disse Sandra, que aproveitou para reiterar o posicionamento da UFMG em relação à realização da corrida da Stock Car no entorno da UFMG. 

Reitora destacou importância de ouvir os povos indígenas
Reitora destacou importância de ouvir os povos indígenas Foto: Foca Lisboa | UFMG

Sobre o compromisso da UFMG com o meio ambiente, Sandra Almeida ressaltou a importância de ouvir os povos indígenas. "Eles têm chamado nossa atenção para questões ambientais há muito tempo. Esse caminho que a gente abre por meio da Formação Transversal é um passo ainda pequeno, mas que dará frutos. Se pessoas de diversas áreas, como engenharia, física, matemática, artes e letras, fizerem esse curso, a gente já terá feito diferença", afirmou Sandra Goulart.

Harmonia com o meio ambiente
Na mesa de abertura também estavam presentes o procurador da República em Minas Gerais Edmundo Antônio Dias Netto Jr., a promotora de justiça de Frutal, Minas Gerais, Daniela Campos de Abreu Serra, a pró-reitora adjunta de Extensão, professora Janice Amaral, o coordenador da Funai, Regional Minas Gerais e Espírito Santo, Douglas Krenak, as coordenadoras do projeto Hãmhi, Mara Vanessa Faria Dutra (no âmbito do Instituto Opaoká) e a professora Vanessa Sena Tomaz (na UFMG), e o coordenador da Formação Transversal em Agricultura Familiar e Agroecologia, professor Matheus Anchieta Ramirez.

Edmundo Dias Netto destacou que a recuperação de áreas devastadas pelos não indígenas sinaliza o reconhecimento do direito à existência dos povos originários do país. "E não é no sentido de instrumentalizá-los para que reparem o que nós, não indígenas, devastamos, mas de respeitar os seus modos tradicionais de vida por opção, nas condições adequadas, para que sigam vivendo em harmonia, como sempre fizeram com o meio ambiente" acrescentou o procurador.

Há um ano na coordenação da Funai, trabalhando com povos indígenas dos estados de Minas Gerais e Espírito Santo, Douglas Krenak caminha ao lado de parentes Maxakali há bem mais tempo. Em sua fala, ele disse que recuperar o meio ambiente não é tarefa fácil. "É muito complicado, mesmo para nós, povos indígenas, que temos um conhecimento, uma técnica de preservação. Então, a gente precisa dialogar com os não indígenas para saber que tecnologia é essa que eles têm que recuperam o meio ambiente", ressaltou.

Artesanatos Maxakali à venda na porta do auditório
Artesanatos Maxakali à venda na porta do auditório Foto: Jebs Lima | UFMG

Floresta de volta e com comida no prato
Ao explicar a origem do nome Opaoká, uma das grandes mães ancestrais na tradição do candomblé, que se torna mãe de Oxóssi – identificada no Brasil com a jaqueira –, Mara Vanessa apresentou o executor do projeto Hãmhi. "O Instituto Opaoká nasce de trajetórias longas e diversas de convivências com povos originários e comunidades tradicionais do Brasil, da América Latina e da África, com a intenção de servir, ajudar a criar pontes e promover trocas de conhecimentos", disse a coordenadora do projeto.

A professora Vanessa Tomaz enfatizou que o objetivo do projeto Hãmhi é "trazer a floresta de volta, mas colocando comida no prato". Também coordenadora da Formação Intercultural para Educadores Indígenas na UFMG, ela refletiu sobre o papel do projeto na  formação dos estudantes Maxakali, que hoje estão na graduação e no mestrado em Educação na Universidade. 

Matheus Ramirez: 'Formação Transversal é posicionamento contra-hegemônico da Universidade'
Ramirez: formação transversal é posicionamento contra-hegemônicoFoto: Jebs Lima | UFMG

O coordenador da Formação Transversal em Agricultura Familiar e Agroecologia, Matheus Ramirez, relatou que a iniciativa é um sonho que se realiza depois de conversas entre grupos de professores com o meio rural. "Entendemos que a agricultura familiar traz com ela todos os povos socialmente excluídos e historicamente invisibilizados do meio rural. E a agroecologia também aborda a perspectiva de produção agropecuária que rompe com o modelo hegemônico. Essa formação é um posicionamento contra-hegemônico da Universidade", afirmou o coordenador.

"A exemplo de uma rede, ela vai sendo tecida, juntando iniciativas internas, mas que buscam sempre o protagonismo da comunidade externa. A formação transversal surge para que as comunidades externas possam contribuir com a formação acadêmica universitária. Muito mais importante que ver o meio rural como espaço de produção agropecuária é entender os territórios como espaço de produção cultural e reprodução social. O que tem de mais valioso no meio rural, nas matas, florestas, veredas e vazantes é o seu povo", refletiu Matheus.

Joelson dos Santos alertou para necessidades básicas de um país rico em recursos naturais
Joelson dos Santos alertou para necessidades básicas de um país rico em recursos naturais Foto: Jebs Lima | UFMG

Unidos pelos sofrimentos, juntos pela reconstrução
Na mesma linha, Joelson dos Santos, Notório Saber pela UFMG e líder da Teia dos Povos e do Assentamento Terra Vista, no sul da Bahia, deu início à aula inaugural da Formação Transversal em Agricultura Familiar e Agroecologia. "Eu vim aqui para defender o meu povo. Em todo lugar que eu vou, eu não sou Joelson, eu sou minha entidade, e minha entidade é meu povo. Tenho o maior orgulho de ser da diáspora africana. Tenho o maior orgulho de pertencer à irmandade dos meus povos originários, com os quais todo dia a gente aprende muito", disse ele.

Ao revisitar a história da escravidão no Brasil, Joelson lembrou que os povos originários e os da diáspora africana são um só em seu sofrimento, e o abuso por negação de terra que sofreram continua ocorrendo hoje. "Em pleno século 21, uma sociedade grandiosa como a brasileira está passando por essa situação. Somos o único país do mundo que tem muita terra e pouca gente, que produz três vezes mais do que o necessário para alimentar o seu povo e, ainda assim, deixa pessoas com fome, dormindo debaixo de viadutos, sem casa, sem trabalho e sem dignidade", denunciou o ativista.

Joelson também exaltou a sabedoria dos povos originários, cuja tradição oral é milenar, ao apontar como os latifúndios exploram o meio ambiente e a sociedade por interesse próprio e individual: "Se não deixarmos que nos roubem mais, nós podemos nos tornar a maior referência para a humanidade. E, como dizem os nossos irmãos indígenas, nessa Terra cabem oito bilhões de pessoas, sem ódio, sem violência, sem preconceito, sem destruição nenhuma."

Canto realizado no início do evento por representantes Tikmũ’ũn da família Maxakali
Canto realizado no início do evento por representantes Tikmũ’ũn da família Maxakali Foto: Foca Lisboa | UFMG

"Eu tenho fé que nós vamos reagir e vamos reconstruir esse país para ser um país da felicidade, da esperança, do amor e da bondade. Agora depende de cada um de nós em seu local, na sua missão, na sua responsabilidade. Ninguém precisa carregar as dores do mundo. Precisamos tomar coragem para propor outra perspectiva de humanidade capaz de louvar a terra, assim como os Maxakali fazem com seus cantos para cada animal, cada árvore. Somos maioria. Vamos assumir uma aliança indígena-negra-popular para retomar essa terra, para que o Brasil seja um país de todos, terra de festa, trabalho e pão."

Monitoramento
Também presente na mesa da aula inaugural mediada pela professora da UFMG Guiomar da Cunha Frota, estava a promotora Daniela Campos de Abreu Serra, representando o promotor do Ministério Público de Minas Gerais e coordenador do Caoma, Carlos Eduardo Ferreira Pinto. Ela apresentou os resultados obtidos pelo projeto Hãmhi no âmbito do MP. A plataforma Sementes, criada pelo Caoma, é a responsável pela regulamentação interna que permite, por meio da apresentação de projetos e monitoramento, o retorno de valores monetários de compensações ambientais. 

Daniela Campos de Abreu Serra substituiu coordenador do Caoma, o promotor Carlos Eduardo Ferreira Pinto
Daniela Campos: povos indígenas extraem valores de atos cotidianosFoto: Jebs Lima | UFMG

Interessada em causas sociais desde que chegou a Águas Formosas, Minas Gerais, para atuar como promotora, Daniela Campos afirmou reconhecer que, independentemente da métrica quantitativa, o foco do projeto Hãmhi é a perspectiva de construção com e para os Maxakalis. "Não é simples. Em um evento pensado com a cabeça do branco, nós vamos chegar lá às 8h, vai todo mundo pegar a enxada e trabalhar de uma maneira mais objetiva. O que nós aprendemos com a comunidade Maxakali é muito mais profundo. Os povos indígenas tiram valores de atos que, para nós, são cotidianos e sem nenhuma graça", comparou a promotora. 

Resultados
A terra que foi demarcada para a comunidade Maxakali tem uma série de problemas, entre eles o difícil acesso à água. Com a formação de 30 agentes agroflorestais indígenas e o reflorestamento, a perspectiva é de segurança alimentar. Oitenta por cento dos intercâmbios foram concluídos, e um terço dos cursos de agrofloresta está em andamento. A construção de viveiros foi finalizada, assim como o etnomapeamento, instrumento que mapeou as demandas e modos de agir e pensar do povo Maxakali. Entre os desafios identificados, estão as mudanças climáticas, incêndios, segurança hídrica, soberania alimentar e problemas de saúde frequentes entre os agentes e suas famílias. Somente no período de plantio, seis mortes foram registradas.

Beatriz Tito Borges