Tese discute o dandismo como obra de arte
Trabalho premiado por Capes e UFMG mostra como o dândi descortina novas formas de aparição do sujeito no espaço público
Em um de seus tantos aforismos, o escritor irlandês Oscar Wilde (1854-1900) defende que “devemos ser uma obra de arte ou vestir uma”. O autor de O retrato de Dorian Gray não restringiu sua consideração ao campo ficcional: em várias fotos, aparece com ternos excêntricos, elegantes e anacrônicos, que remetem à moda de quase cem anos antes de seu tempo, em um intencional deslocamento estético-temporal.
Essa postura de se vestir com alguma afetação estética e ora andrógina, denominada “dandismo”, foi o ponto de partida da pesquisadora Angélica Adverse em sua tese, defendida no Programa de Pós-graduação em Artes Visuais da Escola de Belas Artes em 2016. Angélica analisou o dandismo como manifestação não apenas modal-cultural, mas principalmente artística, pensando o dândi como um criador que faz de si mesmo a obra de arte que pretende apresentar ao mundo.
Orientada por Patrícia Franca-Huchet, a tese Devemos ser uma obra de arte ou vestir uma: o dandismo como medium-de-reflexão na arte percorre um caminho que leva da literatura do século 19 à arte contemporânea. O trabalho foi o vencedor dos prêmios Capes de Teses deste ano na categoria Artes e do UFMG de Teses.
Traje para a modernidade...
Segundo Angélica, a história do dandismo se relaciona diretamente com os movimentos de reforma europeus – como a reforma protestante, no século 16 – e o advento do pensamento democrático pós-monarquias, na virada do século 18 para o 19. “É preciso lembrar que, até a Revolução Francesa, havia normas de como se vestir: as roupas e as cores que se podia usar dependiam da classe social que cada pessoa ocupava.”
Assim, o dandismo vai aparecer justamente no período posterior à Revolução Francesa, interregno em que a aristocracia ainda não havia terminado de ruir e a democracia não havia terminado de se afirmar. Os dândis do período – proeminentes principalmente na Inglaterra – eram os jovens que, mesmo não possuindo títulos de nobreza, vestiam roupas que eram próprias da aristocracia e a identificavam.
"O dândi vai se afirmar esteticamente como aristocrata, mas sem ter a linhagem. Ele anuncia um novo comportamento do indivíduo no espaço social, uma nova possibilidade de aparição e de aparência do sujeito no espaço público. Sua postura põe em questão o dinheiro, as posses, as classes. Há nesse artifício uma estética de deslocamento, a ocupação de um espaço que não é próprio”, diz Angélica.
Transformando-se em obra de arte, o dândi estaria fazendo de si um “medium-de-reflexão” – nas palavras da pesquisadora, uma espécie de “princípio de correspondência”, que “propõe uma conexão entre o corpo-espírito e o absoluto” – para a manifestação de sentidos e o estabelecimento de sua relação, como sujeito, com o mundo.
...Ultraje à contemporaneidade
Angélica Adverse explica a postura dândi como uma aparição precursora daquilo que, posteriormente, seria denominado “performance”: uma manifestação artística em que produção e consumo ocorrem simultaneamente, em expressão livre e arrojada do próprio artista. “É interessante pensarmos o dândi como esse artista que produz uma ficção constante de si, um devir outro que faz da própria vida uma obra de arte contínua, sempre inacabada, sempre incompleta, mas que forja alguma ideia de unidade”, diz.
Para a pesquisadora, a arte contemporânea está muito relacionada à realidade prática – e às questões políticas – de seu próprio tempo. Nesse sentido, a postura dândi manifestada nos dias de hoje parece sugerir um interesse dos artistas de fugir do jugo desse real político, em um processo de construção ativa do si. “O dândi é um sujeito que propõe inventar a si mesmo, em vez de, passivo, se deixar ser construído pelo mundo”, sugere Angélica.