Um lugar que transpira música

O Provão e o Metropolitano de Moscou

Mesmo nos piores anos da chamada "guerra fria", sempre houve, de parte a parte, pessoas de boa-vontade que, de um lado e outro, trabalhavam pela distensão. Um dos instrumentos imaginados para melhorar as relações Leste-Oeste no mundo foram visitas de intercâmbio que americanos deveriam fazer à União Soviética e soviéticos aos Estados Unidos. Esperava-se que destes contatos pudesse resultar um melhor conhecimento recíproco. E daí, quem sabe, um desarmamento de espíritos que ajudasse na preservação da paz. Contou-me, a propósito, o Dr. Jürgen Samtleben, eminente pesquisador da Sociedade Max Planck, em Hamburgo, que, por ocasião de uma de tais visitas, levaram um cidadão norte-americano a conhecer o metrô de Moscou, que sempre foi motivo de orgulho da Nomenklatura soviética. Servia para demonstrar que o comunismo era capaz de produzir não apenas uma sociedade justa, mas também coisas bonitas e funcionais. Depois de fazer o americano maravilhar-se com o brilho e o asseio das instalações, o soviético que o acompanhava passou a destacar a impecável pontualidade dos trens. Para comprová-lo, dispôs-se a um teste. Levou o americano até o quadro da estação onde estavam afixados os horários e sugeriu que aguardassem ali, justos três minutos, que era o tempo em que devia assomar um dos imponentes trens da rede metropolitana de Moscou. Passam-se os três minutos e o trem não chega. Dez minutos, nada de trem. Mais vinte minutos e o atraso persiste. Visivelmente desconcertado e não sabendo como explicar a falha do que seria o mais que perfeito sistema de transportes de Moscou, vira-se o funcionário para o americano e diz: "Está bem, o nosso trem atrasou. Mas, de outra parte, vocês americanos tratam muito mal os seus negros!".

 

Ocorreu-me esta anedota a propósito do artigo publicado pela Professora Maria Dirlene Marques na coluna Opinião do BOLETIM, em sua edição de 16 de fevereiro.

 

Ao contrário do funcionário soviético, a Autora não está preocupada em exibir coisa alguma, mas insiste em falar mal do Provão, porque a universidade, em geral, não vai bem. Todos concordam que não vai bem. Mas será justo responsabilizar o Provão ­ uma iniciativa a bem dizer recém-implantada ­ por um mal que tem raízes tão antigas e tão complexas?

 

No seu texto, a Professora faz reparos ao Provão enquanto medida avaliatória. Admito que possa haver procedência em alguns de seus comentários. Suponho mesmo que outras imperfeições mais o estejam comprometendo, que na sua metodologia, quer na sua aplicação. Como integrante da Comissão do Curso de Direito, desde o primeiro Provão até o que se acha em preparo neste ano de 2000, posso assegurar que outra coisa não temos feito ­ a Comissão de Direito e a equipe do INEP ­ que perseguir implacavelmente, a cada exame realizado, os erros e limitações apurados, ao mesmo tempo que nos empenhamos em alcançar níveis crescentes de excelência. O progresso na qualidade do exame é visível e a abertura de que a Comissão dispõe junto ao INEP para fazer valer suas idéias reformistas é ilimitada. Embora me falte a experiência pessoal, tenho tudo para acreditar que com as outras comissões não seja diferente.

 

Preocupado desde o início de minha carreira docente com a qualidade do ensino jurídico, não conheço no Brasil ou no Exterior iniciativa que se compare ao Provão, em coragem e amplitude, no seu empenho de mudar o perfil dos cursos de direito. Ignorar o quanto já se ganhou nessa matéria, para fazer ressaltar eventuais deficiências ainda subsistentes, traz a marca inconfundível dos movimentos reacionários no que eles têm de mais obscuro e obscurantista. Ou seja: à míngua de análise crítica, rejeita-se o novo em bloco.

 

Atribuir ao Provão, como faz a Autora, ser "parte de um projeto de universidade que apenas ensina a fazer" é dar-lhe uma importância que ele, penso eu, nunca pretendeu ter. Faz supor que haja em alguma instância secreta de poder, fora do controle das instituições democráticas e do acompanhamento da opinião pública, um plano pouco menos que diabólico e de sofisticadíssima urdidura, capaz de iludir, contra todas as aparências, a percepção de uma centena de eminentes professores, recrutados entre as melhores universidades do País. Pois são eles que definem os objetivos do Provão, cuja matriz legal, de resto, é uma lei votada pelo Parlamento. Ilaqueados em sua boa-fé, estariam estes docentes agindo para impor à Nação o aniquilamento de suas instituições de ensino superior. Esta na mais benevolente das hipóteses. Porque, na sua letra, o texto da Professora não exclui que estejam, todos, pondo sua consciência e seu saber intencionalmente a serviço das trevas. Trevas que já se teriam abatido sobre a alma mater da cultura nacional, pois, segundo a Autora, por medidas como o Provão, a Universidade "permitiu" que o Governo a "desmoralizasse". Essa proposição merece ser melhor considerada em seu conteúdo semântico. O Provão, sabe-se, consiste em avaliação. Boa ou má, não mais que uma avaliação. Se uma simples avaliação tem o efeito de desmoralizar, de duas uma: ou a avaliação foi inadequada ­ e então é ela mesma que se desmoraliza ­ , ou é o objeto da avaliação que não é bom. E nesse caso a desmoralização, antes que um resultado perverso, terá sido um efeito saudável e útil.

 

Encerra a Professora Maria Dirlene Marques o seu artigo com a afirmação textual de que "o Provão não passa de mais um instrumento de destruição da universidade que produz conhecimento e de construção da universidade utilitarista". Mais contundente, impossível. Será, porém, verdadeiro? Visões conspiratórias como essa começam por investir na força do impacto. E terminam por dispensar a quem as enuncia do dever primário de as demonstrar.

 

Professor Titular da Faculdade de Direito da UFMG e membro da Comissão do Curso de Direito do Exame Nacional de Cursos (Provão)

João Baptista Villela