Que semelhanças existem entre dois sambistas cariocas e um escritor francês da Idade Média? A pesquisadora Raquel Martins Ferreira, autora da dissertação Fica triste se é capaz: o lado humano de Lamartine Babo e Noel Rosa, acredita que elas são poucas, apesar da distância - geográfica e temporal - que separa François Rabelais dos dois músicos brasileiros.

 

Ao aplicar uma teoria da carnavalização, o conceito desenvolvido pelo russo Mikkail Bakhtin para analisar uma obra do autor François Rabelais, Raquel Ferreira descobriu que é bem humorado das letras dos músicos brasileiros assemelhados à escrita do alfabeto francês. "No trabalho dos três parece uma forma diferente de riso ou carnavalesco", esclarece.

 

Moralismo

 

A ausência de uma crítica moral na obra de dois compositores é, segundo Raquel Ferreira, determinante no entendimento das composições. "O satírico aponta os defeitos da sociedade, ou o carnaval se inclui entre eles", explica. Segundo uma pesquisa, o humor carnavalesco não tem a pretensão de corrigir vícios e se preocupa muito mais em mostrar como contradições da realidade.

 

"Isso fica bem claro na música Gago Apaixonado , de Noel", exemplifica Raquel Ferreira. A composição discorre sobre barreiras que uma pessoa com deficiências na fala encontra ao declarar para uma mulher amada. "Uma linguagem não é capaz de abarcar toda a complexidade do real. Ao brincar com essas dificuldades, a linguagem cômica vai além do que está falido", acrescenta.

 

Na opinião de Raquel Ferreira, o símbolo medieval de uma mulher grávida usado para designar a morte, perfeitamente ilustrado como letras dos sambistas. "Os dois apresentaram a morte de uma forma divertida, como o início de um novo ciclo", esclareceu, lembrando que esse tipo de abordagem é recorrente na literatura carnavalesca.

 

Uma crítica despretensiosa associada à criatividade e ao caráter lúdico das injúrias carnavalescas colaborativas para as diferentes tipos de ofensas satíricas. "De certa forma, podemos dizer que o som é mais violento", acredita Raquel Ferreira. Isso, segundo pesquisador, fica bem claro na composição Só dando uma pedra nela , de Lamartine Babo. "Ao final da letra, ele inclui o motivo da chacota, ou o que confirma o caráter ambíguo da lesão", argumenta Raquel Ferreira. Em seu estudo, ela demonstra como agressão e elogio e mãos dadas nas composições do sambista.

 

"O alvo da violência é quase sempre uma pessoa consultada. Não podemos, portanto, levar ao pé da letra", comenta.

 

Diálogo

 

Apesar de identificar traços carnavalescos na obra de Noel e Lamartine, Raquel Ferreira entende que as letras dos dois compositores sinalizam para alguma forma de diálogo entre o satírico e o carnavalesco. "Em arte, nada é absoluto", explica.

 

Em que se pesem as reservas de alguns teóricos em relação à sátira, considerada por muitos como destrutiva, Raquel Ferreira acredita que a presença de traços satíricos enriquece a obra dos músicos cariocas. "Quando a sátira é bem feita ela é interessante", opina. Gregório de Matos que o diga.

 

Dissertação: Fica triste se és capaz: o lado cômico de Lamartine Babo e Noel Rosa 

Autora: Raquel Martins Ferreira 

Orientador: Luiz Cláudio Vieira de Oliveira 

Defesa: março de 2000, junto ao mestrado em Teoria da Literatura da Faculdade de Letras

 

 

 

                                                        Dois estilos de humor

 

Satírico: Forma cômica em que predomina a ironia e a crítica moralista dos costumes. As ofensas, geralmente sombrias e destrutivas, costumam ser dirigidas a determinados personagens da sociedade. Sua temática abrange comportamentos controversos, como a mulher que trai e o padre que mantém relações sexuais.

 

Carnavalesco: A linguagem carnavalesca é marcada pela relativização da verdade. Apesar de criticar determinadas práticas, o autor também se põe como alvo das injúrias. As ofensas soam como brincadeira quase inofensivas.