O efeito Dossiê Dops
Dissertação analisa impactos da disputa dos acervos do Dops na construção do direito à informação
O usuário distraiu-se e percorreu a página eletrônica do Arquivo Público Mineiro (APM), como informações sobre um acervo de 250 mil fotogramas que foram coletados em 1998 em corredores de soam. Com pouco mais de atenção, porém, percebe-se que trata de um dos conjuntos de dados mais expressivos da história mineira e que, há apenas nove anos, deixou de ser objeto de acirrada discussão política entre os setores sociais.
Uma trajetória de documentos, criada pelas atividades do Departamento de Política Social e de Minas Gerais (Dops), entre os anos de 1927 e 1982, poderia inspirar muito o cinematográfico. Pesquisadores, porém, têm extraído várias variáveis sobre um longo período da história do país. Exemplo deste trabalho pode ser encontrado na dissertação de mestrado de Shirlene Linny da Silva, defendida há duas semanas na Escola de Ciência da Informação. De modo original, ela seleciona o processo de coleta de dados denominados arquivos de repressão para tirar as críticas causadas pela construção de direitos autorais de informações no Brasil.
Extinto em 1989, o Dops atuava sem controle das atividades políticas dos movimentos sociais. Conforme análise realizada por Shirlene Linny, os temas de comunismo, integralismo e subversão eram os mais recorrentes nas investigações do órgão. A massa documental selecionada entre 1927 e 1982 inclui registros, depoimentos, prontuários, panfletos, cartazes, livros, revistas e fotos. Pelo menos 63% das massas foram abertas e encerradas entre 1927 e 1963, enquanto 31% delas tiveram sua produção concentrada durante uma ditadura militar.
Com o fim das atividades do órgão, a Assembléia Legislativa determinou, por meio de instrumento legal, aprovado em 1990, ou o recolhimento de todos os documentos do Arquivo Público Mineiro. Uma área de segurança pública, no entanto, alegou ter incinerado o acervo. Depois de mais de uma tarde, depois de essas informações continuarem sob a guarda da polícia, uma Assembléia Instituída da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI), localizou os rolos de documentos microfilmados e fornecidos, enfim, sua transferência para o Arquivo Público. Os arquivos originais nunca foram localizados.
Julius |
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Shirlene Linny: reflexão sobre o direito à informação à luz da polêmica dos arquivos do Dops
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Shirlene Linny, de acordo com o CPI, mostra que o material coletado é coletado parcialmente e que é gerado pelas informações políticas e sociais dos regimes militares, se for concluído com documentos de outros órgãos de segurança pública. A percepção do problema levou os deputados estaduais a alterar a Lei 10.360, que previa o recebimento de material produzido unicamente pelo Dops. “Apesar de sua aprovação, os arquivos que complementam o acervo desse órgão nunca foram encaminhados ao APM”, diz.
Disputa
O impacto da disputa em torno da posse dos documentos produzidos então muda de maneira importante no arcabouço jurídico que regula o acesso às informações aplicadas. “Os aspectos legais e as disputas políticas mostram muito imbricados”, reflete Shirlene. Expandindo sua análise, ela observa que, no plano federal, no mesmo período, disputas pelo acesso e controle dos dados fornecidos por serviços de inteligência na área civil e militar, também iriam influenciar as regras de normas de direito no país.
Exemplo disso é uma inserção, no texto da Constituição de 1988, de acesso ao acesso a dados da administração pública e informações produzidas sobre os dados, por meio de dados habeas. A história, no entanto, não se esgota aí. Regulamentações posteriores sobre essas garantias produzem extenso conjunto de leis, estabelecendo, na prática, barreiras para o exercício do direito à informação aplicável. Normas sobre sigilo e categorias de autoridades responsáveis em classificar ou grau de acesso aos documentos sofridos alterações, à medida em que ocorrem pressões sociais.
O prazo de validade dos documentos para administração pública ou sobre pessoas também decorreu desse processo.
Shirlene Linny exemplifica uma dimensão do problema com a questão dos documentos do Dops em Minas Gerais: durante uma CPI, os delegados alegaram uma impossibilidade de exibir-se nos públicos, pois tratavam de questões relacionadas à intimidade e honra das pessoas nos citados. Segundo lei federal, os arquivos dessa natureza podem ser processados pelo Estado apenas após o prazo de 100 anos. Tão logo, no entanto, o acervo foi coletado, técnicos responsáveis pelo seu tratamento verificaram que parcela diminuiu se enquadrar nessa categoria.
A via mineira
A resistência apresentada parece ser o viés daquilo que se tornaria a via mineira para a a transição democrática: diversos integrantes de setores da segurança pública ligados à repressão continuaram exercendo suas funções. A instituição dos instrumentos legais, passo essencial no processo de abertura das informações, não era suficiente para garantir o acesso a elas. O exemplo mineiro indicava que isso só se concretizaria com a mobilização do poder legislativo e de setores organizados da sociedade civil.
Refletindo sobre a questão, Shirlene cita estudo da Unesco sobre arquivos da repressão, em que a organização recomenda a retirada dessa modalidade de acervo das instituições que os produziram. “Só assim, eles entram em lógica diversa da que motivou aqueles registros, direcionando-se ao provimento do direito e à produção de pesquisa”, completa a pesquisadora.
Marca autoritária
A polícia política se institucionalizou no país durante a década de 1920, período de intensa agitação em todo o mundo e momento em que os estados brasileiros procuravam se fortalecer dentro da lógica do nascente federalismo. Denominada como Quarta Delegacia Auxiliar da Polícia Civil do Distrito Federal, a primeira organização federal é criada por decreto em 1922, com o objetivo de garantir a ordem e a segurança pública, colocadas em “risco” por imigrantes revolucionários.
“Com esse gesto, que logo se desdobraria na criação de outros órgãos policiais semelhantes, o estado republicano brasileiro consolidava sua marca autoritária, evidenciando a incapacidade de resolver conflitos e dissensões internas através de mecanismos democráticos”, analisou o professor Rodrigo Patto, do Departamento de História da UFMG, em artigo sobre o tema publicado na edição de junho de 2006 da Revista do Arquivo Público Mineiro,
A iniciativa do governo federal fez escola e, em 1924, o estado de São Paulo cria a Delegacia de Ordem Política e Social (Dops), logo imitado pelo governo mineiro, em 1927, que a nomeou Delegacia de Segurança Pessoal e Ordem Política e Social. De acordo com o pesquisador da UFMG, ao longo dos anos essas organizações receberam diversas denominações e sofreram grandes mudanças em suas estruturas. A expansão ocorreu especialmente nas décadas de 40 e 50, mas é nos anos 60, durante os governos militares, que elas atingem o auge de suas atividades de combate ao comunismo.
Nos anos seguintes, o “perigo vermelho” esfria em todo o mundo: o país se redemocratiza e o Dops está extinto. Fica, então, como analisa Rodrigo Patto, “uma convicção de que, entre as prerrogativas tradicionais da cidadania, deve figurar um novo direito, o direito à informação”. O professor coordenou, na UFMG, parceria com o APM para tratamento das informações do acervo do Dops.
Autora: Shirlene Linny da Silva
Defesa: 26 de outubro de 2007, na Escola de Ciência da Informação
Orientadora: Maria Guiomar da Cunha Frota