Entre tiviras e barbies
Livro analisa formações discursivas sobre o homoerotismo no Rio de Janeiro
Há diversos caminhos para revisitar como histórias dos homens. Rastrear práticas e palavras que como nomeiam é certamente um deles, e abre diferentes possibilidades interpretativas. Exemplo dessa proposta pode ser apreciado no livro @super @ s cariocas - Interpelações, experiências e identidades homoeróticas no Rio de Janeiro , séculos XVII a XX. Publicada pela Editora UFMG e pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj), uma obra é fruto do estudo de doutorado de Carlos Figari, defendida no próprio núcleo de pesquisa.
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O texto de Figari, professor universitário na Argentina, não tem uma pretensão histórica de experiências homoeróticas no país. No entanto, apresenta ao leitor vasta pesquisa documental sobre assuntos dessa natureza, inaugurada no período colonial, por meio de viajantes, religiosos e funcionários do reino português. Como observa o autor, insta-se, desde então, o silenciamento das vozes dos habitantes do Novo Mundo.
Postumamente, então podemos conhecer suas vivências e ouvir suas vozes mediadas pelo discurso indireto, presente nos textos dos estrangeiros.
Que escuta das práticas sexuais desses povos denominados luxuriosos? Seriam eles “muito afeiçoados ao pecado, entre os quais não têm por afronta; o que serve serviço de macho, se tem valor, e contamina essa bestialidade por proeza ”, conforme o registro do senhor do engenheiro Gabriel Soares de Sousa, em 1587. Pecado nefando era o termo que nomeia, meia-luz, ou comportamento homoerótico .
Ainda nesse universo, Carlos Figari encontra ou teve, palavra que é usada para homens denominados efeminados. De teor pejorativo, ou termo sugerido, para os indígenas, haverá negatividade na recusa do homem em exercer papel ativo socialmente. Não há, no entanto, registro sobre exclusão daqueles que apresentaram inversão de gêneros nas sociedades nativas - homens ou mulheres.
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Reconstrução
Análise do autor indica que as interpelações dos estrangeiros para práticas homoeróticas do Novo Mundo obedecem a uma lógica de reconstrução de si mesmo e do “outro” que busca normatizar determinadas hegemonias – discursivas e de poder social. Apoiados na identificação binária dos dois universos – selvagem/civilizado e pecado/moral –, os colonizadores reforçavam a construção da diferença visualizando o “outro” como ser abjeto, protagonista de comportamento “nefando”.
É também sob tal lógica que a valoração da sexualidade será aprofundada no período colonial. Em especial, no sistema patriarcal, em que mulheres, crianças e incapazes – como os escravos –, todos eles agentes passivos, se contrapõem à ordem masculina, que remetia ao papel ativo socialmente. Já na construção dessa nova sociedade, instaura-se certa clandestinidade no homoerotismo. Condenada pela Igreja, a sodomia e a fanchonice se espalhariam, ainda assim, em colégios, conventos, ordens religiosas, espaços públicos abandonados e casas dos senhores de engenho, em que “corpos negros” serviam na iniciação sexual dos mandatários, inclusive homoerótica.
A idéia de transgressão à natureza e a Deus – documentada em inúmeros processos da Inquisição – muda, por sua vez, com a urbanização daquela sociedade e os novos paradigmas do século XVIII. O homoerotismo continua sendo proibido no domínio público. Porém, o período assiste à ampliação da esfera da vida privada, da consciência individual e de experimentações conceituais e estéticas no campo da sexualidade. Doravante, para o novo discurso hegemônico, o pecado transforma-se em doença e caberá à ciência esquadrinhar o desvio chamado homossexualismo.
Um pouco mais à frente, uma experiência homoerótica sofre nova guinada e passa pelo Figari denominado desidentificação de todos os arranjos discursivos que foram moldados. Sai da clandestinidade e, em busca de controle das narrativas sobre si mesmo, que estabelece bandeira de cidadão gay - que abre hoje um fragmento de universo de travestis , ursos e barbies, transformadas em ícones de beleza corporal entre tribos que masculinidade.