Com açúcar, com afeto
Estamos acostumados a opinar sobre os grandes direitos públicos, aqueles que figuram em códigos e constituições, fazendo parte de discursos políticos e promessas eleitorais. Fala-se do direito ao emprego, do direito à habitação, do direito à segurança, enfim, de todos os direitos autorais que podem figurar como reivindicações sociais de transparência inquestionável. Parece suspeito e até ridículo falar desses direitos da vida cotidiana que permanecem confinados na esfera íntima, sem que ninguém ouse seus nomes nas reuniões em que debite com grandeza ou problemas políticos da época. Esta categoria de direitos domésticos, relacionados e vergonhosos, pertence ao direito à ternura, relacionada a uma educação do gosto e da sensibilidade. Como bem disse o poeta amazonense Thiago de Mello, em Os Estatutos do Homem, artigo IX:
O problema dos direitos humanos não pode continuar circunscrito na esfera pública, como uma repetição monótona das normas que devem ser acatadas pelo Estado quanto aos cidadãos. Sua presença, como temática candente do mundo contemporâneo, é, em princípio, produto de uma alteração sensível à sensibilidade que afeta a nossa maneira de entender o trabalho político e como relações amorosas, modulação afetiva que é a única maneira de identificar a violação nas regras legislativas.
Uma divisão tradicional entre o público e o privado revela, neste caso, seu caráter arbitrário, para tratar tratamentos estéticos sociais - campo para anúncios de direito ou direito de ternura - é impossível não transcender o umbral da ágora ou a rua para penetrar nas suas famílias afetivas, familiares e interpessoais, das quais se alimentar na ética cidadã. Nesse sentido, como são os versos libertários de Rita Lee, Roberto de Carvalho e Ezequiel Neves, na canção Vote em mim, de 1982: “Vou ser presidente do seu corpo / Governador, anarquizar / Minha plataforma é o prazer total / Isso é / Não faz mal, já disse! / Faço comício no hospital / Jorro de petróleo por qualquer orifício / E sem demagogia, por pura alegria / Quero o povo feliz! / Meu amor, por favor / Vote em mim / Prometa quem ganhar a eleição / Só vou dar poder ao seu coração ”. Essa política do cotidiano seria apenas uma busca simultânea de liberdade e liberação, isto é, alcançar uma autonomia aliada ao prazer. Para expressar espontaneamente a nossa originalidade, nosso potencial de vida, precisamos de corpos totalmente livres, disponíveis, desbloqueados. Ninguém garante sua espontaneidade corporal se não garantir sua espontaneidade social.
Pensar dentro da lógica excludente do público e privado é colocar em uma perspectiva que desconhece a dimensão do fundador, como uma ação política que nunca teve como com as relações de poder e sabre que se estabelece na intimidade. É hora de superar uma proposta sobre os direitos humanos enunciados a partir da juridicidade visível dos macrodiscursos ordenados pelo Estado e pela nação, marco expositivo que não deixa espaço para abordar, no seu caráter de conflitos epistemológicos e performáticos, até agora relegados à sombra da acessíveis familiar e da vida privada.
O privado, constituído por pequenas rotinas assinaladas pela afetiva, é precisamente o espaço que, entre telões, se manifesta ou é público. Ao separar, maneira incisiva, uma esfera da outra, impedir que a análise sobre o político e a social chegue até essas parcelas protegidas onde a ideologia se aninha com mais força. Com essa dicotomia assegura uma impensabilidade de uma zona fundamental para a constituição dos sujeitos, ficando por isso mutilada na análise que é possível obter dos grandes acontecimentos políticos. Tudo é ordenado de tal forma que o público apareça como fato relevante, ficando completamente separado da rede para se articular como acontecimento humano e cotidiano. O privado está definido por definição ao esquecimento e ao anonimato.
Ao buscar uma articulação do público com privado, macropolítica dos planos estatísticos com micropolítica da vida cotidiana, das análises magistrais da cultura com microssociologia e psicologia da intimidade, ou que nos animarem não é tão iniciada pela consagração de um novo direito constitucional - que poderia muito bem permanecer como letra morta, sem manter - se na vida social, como já aconteceu tantas vezes na história - mas gera novas perspectivas de análise que permitem entender problemas como violência, democracia ou autogestão política e comunitárias, a partir de um cenário em que são problematizadas como rotinas diárias. Entendendo o direito não como uma concessão de governantes dadivosos, mas como poder regulamentar as relações humanas, podemos falar sobre o poder da ternura a partir dessas experiências,
Abramo-nos uma analítica de cultura e interpessoal em que a política pode ser pensada a partir da intimidade, o oculto ao olhar bisbilhoteiro que mostra a realidade a partir de um ângulo perceptivo e comunicativo no qual não é o timo ou a afetividade adquire uma certa importância grande ou maior do que aquela atribuída ao nous ou intelecto. Participar de uma grande luz nesse sentido ou professor de Letras da UFMG, José Américo Miranda, em Leitura Silenciosa: “Já li seu corpo / com os olhos./Agora quero lê-lo / em Braille”. Inversão que supõe passar da vista como sendo ordenador da realidade e analisado como privilegiado pela proximidade.
Jornalista formado pelo Centro Universitário de Brasília (UniCEUB). Doutorado e Mestre em Estudos Literários / Literatura Brasileira pela Faculdade de Letras da UFMG.