Estação do Lazer

A razão da crise

 

O país que resolve as questões sociais absolutizando o mal revela fragilidade do ideário de nação. A república tem o papel de zelar pela vida de todos os cidadãos, e não apenas dos mais afortunados. Prefere-se exterminar a educar, integrar ou curar. A questão vigente não é resgatar o marginal ou evitar a doença, mas explorar o excluído e o doente. Na lógica patrimonialista, o melhor é armar-se e garantir o seu quinhão. O mal-estar não é mais da ordem das restrições, mas da ordem dos excessos.

 

Considero o coronelismo pós-industrial e o empresariado em seu abusivo exercício de acumulação os maiores responsáveis pela violência no Brasil. O Brasil do mando, da arrogância e da exploração dos desapropriados. Os patrões de dona Plácida, a empregada, em Memórias póstumas de Brás Cubas, obra-prima de Machado de Assis: "Chamamos-te para queimar os dedos nos tachos, os olhos na costura, comer mal ou não comer, andar de um lado para outro, na faina, adoecendo e sarando, triste agora, amanhã resignada, até acabar na lama ou no hospital; foi por isto que te chamamos, num momento de simpatia". O Brasil, desde a sua fundação, vem se tornando um imenso campo de concentração de renda.

 

A república é filha dos coronéis, das oligarquias e do político que aprendeu a negociar apoio em troca de favores. O uso indevido do espaço público, como se fosse privado, é antigo. Entre os significantes que fundam a política no Brasil, temos manipulação, fraude, suborno e desrespeito à coisa pública. Para que serve o político? Para defender os interesses dos cidadãos, criando condições legais que lhes garantam qualidade de vida. Ora, o que temos são grupos de interesses se digladiando, gestores do capital defendendo seus nacos numa câmara corporativa.

 

A palavra "crise" aparece com crescente frequência no vocabulário cotidiano. Bem mais que categoria política, "crise" tornou-se sinônimo e explicação fácil e banal para um complexo universo de processos econômicos, políticos, sociais e culturais. Na perspectiva dos "donos do poder", a "crise" não passa de um "acidente de percurso", um mal-estar passageiro, febre ocasional em um corpo normalmente sadio. Para resolvê-la, bastam correções de rumo, conjunturais e localizadas, anos-luz distantes de uma intervenção profunda nas estruturas sociais, econômicas e políticas do país. A crise é a própria história brasileira, uma história que se escreve a partir do século 16.

 

No momento mesmo do seu "descobrimento" oficial, o Brasil é lançado no grande ciclo da expansão comercial europeia, concretamente alimentando a acumulação de capital em âmbito internacional. Tudo isso já se encontrava sob o rigoroso controle das companhias comerciais que trabalham em regime de monopólio. O latifúndio hereditário, a degradação do trabalho, a produção para o mercado externo, a vinculação às economias hegemônicas: será difícil perceber aqui, em gestação, as feições essenciais da futura estrutura capitalista brasileira?

 

Socialmente, o Brasil teve como núcleo formador a grande família patriarcal, excludente e exclusiva, caracterizada pela onipotência do proprietário, pela sujeição e anulação social da mulher, pela utilização do escravizado como instrumento de trabalho desprovido de voz e de qualquer – mesmo que longínquo – direito social e pela utilização da escravizada como doméstica e objeto sexual. O caráter excludente da economia, baseada na propriedade privada concedida e estabelecida pela Coroa Portuguesa, reaparece na sociedade: a cidadania é propriedade privada, monopólio dos brancos ricos e escravizadores. Esses proprietários recebem da Coroa, junto com o latifúndio hereditário, o direito de exercer, ao mesmo tempo, os poderes executivo, legislativo e judiciário na colônia. A futura "ordem" capitalista já se encontra aqui em formação: o Brasil de nossos dias, onde um reduzido número de famílias controla parcela substantiva da riqueza do país, tem sua estrutura socioeconômica inicial fundamentada no século 16. Será difícil perceber nessa estrutura as condições de partida para a sociedade brasileira de nossos dias?

 

O mundo velho resiste a morrer, não tem a sabedoria de transferir ao mundo novo tudo que acumulou de melhor, todo o seu legado de conhecimento e práticas sociais válidas. A violência é a resistência desesperada desse velho mundo que se esfacela e sucumbe. Se o novo traz consigo sinais do velho mundo – já que não existe ruptura integral na história, mas superação dialética –, mais importante que tudo, o novo traz consigo um vigor, uma beleza, uma vontade insuperável de romper as amarras, de ultrapassar as margens, de fecundar a vida. Em vez de cultuar o homem parcelado e alienado, festejemos o nascimento do homem integral e consciente de sua infinita riqueza. Deixa o menino jogar (1998), como bem canta o grupo Natiruts:

 

"O valor de um amor não se pode comprar/Onde estará a fonte que esconde a vida/Raio de sol nascente brotando a semente/Os anos passam sem parar/E não vemos uma solução/Só vemos promessas de um futuro/Que não passa de ilusão/E a esperança do povo/Vem da humildade de seus corações/Que jogam suas vidas, seu destino/Nas garras de famintos leões/Deixa o menino jogar ô iaiá/Que a saúde do povo daqui/É o medo dos homens de lá/A sabedoria do povo daqui/É o medo dos homens de lá/A consciência do povo daqui/É o medo dos homens de lá".

 

A razão da crise, portanto, encontra-se no muro que separa os brasileiros "daqui" dos brasileiros "de lá".

 

Professor das Faculdades JK e Ascensão, no Distrito Federal. Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela Faculdade de Letras da UFMG 

Marcos Fabrício Lopes da Silva