Este remédio funciona?

Por uma política de saúde mental

O sofrimento mental (psíquico) de estudantes e servidores – docentes e técnico-administrativos – pulsa já há muito tempo. Corrosivo. Insidioso. Quando alguém chega ao seu limite, já carrega uma história amarga de desamparo e o ônus da falência de diversos projetos de vida. As sequências estão marcadas por insuficiências e contradições que dizem respeito a todos e não são necessariamente patologizáveis. 

Constatamos, desde o ano passado, quando essa realidade começou a ganhar notória visibilidade, que o risco das situações de limite é naturalizado e silenciado entre nós. Essas constatações têm sido fruto dos “Conversatórios” que envolveram alguns promotores de cuidado da UFMG. Daí nasceu a Rede de Saúde Mental e o primeiro grande tema convergente, Por uma vida menos solitária. Todos foram capturados por essas palavras, colhidas de depoimento de uma estudante.

A UFMG, além de criar uma rede que aproxima iniciativas de cuidado, está promovendo a IV Semana de Saúde Mental e Inclusão Social e criou comissão institucional para tratar do assunto, a Cisme. Essa comissão, presidida por mim, é formada por pessoas vinculadas ao ensino, à extensão, à pesquisa e à militância sindical. Somos dez: nove servidores (docentes e técnico-administrativos) e uma estudante, com a tarefa de constituir agenda e diretrizes. A sigla diz tudo: cogite, considere, cuide, discorra, matute, medite, pense, pondere, raciocine, reflita. 

Em 2016, a Cisme convocou reuniões e promoveu três “Conversatórios”. O diálogo começou com a “Rede Cidades” e teve continuidade com o Sindifes (Sindicato dos Trabalhadores das Instituições Federais de Ensino), a Pró-RH (Pró-Reitoria de Recursos Humanos), o Dast (Departamento de Atenção à Saúde do Trabalhador), a Fump (Fundação Universitária Mendes Pimentel), o NAI (Núcleo de Acessibilidade e Inclusão), a Apubh (Sindicato dos Professores de Universidades Federais de Belo Horizonte, Montes Claros e Ouro Branco), a Ouvidoria da UFMG, a Casu (Caixa de Assistência à Saúde da Universidade) e o DCE (Diretório Central dos Estudantes), envolvendo também diversas pró-reitorias, comissões e redes.

Convidamos a UFMG a ir além da sua mítica homogeneidade e se ver como um organismo plural: “Saúde mental na univerCidade”. “Trocamos as letras” e promovemos errâncias em nosso território. Foi uma ode à diversidade: de olho na utopia da cidade de nossos sonhos. Cidade saudável? Inclusiva? Como adjetivar o nosso espaço e estabelecer suas fronteiras? 

Idealizou-se o projeto de uma “universidade acolhedora”, ou ainda, de uma “universidade para todos”. No entanto, quando discutimos a saúde mental dos estudantes e servidores, ficou evidente um profundo desconhecimento acerca desse sofrimento. Vencida a batalha por uma vaga, a UFMG absorve e, não raramente, exclui os seus cidadãos. Constatamos que é relativamente viável entrar aqui – difícil é permanecer. Não é banal a sequência que marca todo o processo de pertencimento ao quadro funcional e à dinâmica de formação. Os procedimentos se multiplicam e configuram circularidades e ciladas insuperáveis. A quem recorrer? Como encontrar o fio de Ariadne que nos salve do labirinto construído ao longo de quase um século de história? O depoimento dos estudantes e servidores nos “Conversatórios” foi marcante: os telefonemas reencaminhados, as transferências de responsabilidade, as inconsistências, as siglas, a comunicação cifrada e a ausência de contato face a face efetivo são exemplos de obstáculos relatados. 

Desinformação. Desamparo. Conhecer a instituição tão sonhada converte-se numa prova de paciência e racionalidade. A sociabilidade se dispersa, pois o convite ao desempenho enclausura os sujeitos no drama dos resultados individuais, na contramão das exigências contemporâneas de produção colaborativa. A arquitetura desafia. A burocracia corrompe. Se no caminho uma ocorrência mais grave detém o sujeito, fazendo-o perder o ritmo da procura, ele acaba entrando em silenciosa sintonia com a sensação de solidão, ecoando a lógica fria das grandes cidades. Quanto tempo se passa até a consciência da exaustão? Até que os sintomas encontrem centralidade no embate procedimental? A UFMG adoece?

Obviamente, não são todos que sucumbem, mas o sofrimento mental é a principal causa de afastamento identificada pelo Dast e relatada pelos colegiados. Quem pode e quer admitir que não consegue prosseguir? Quais são as artimanhas e manejos reproduzidos cotidianamente para contornar e evitar o constrangimento de estar “à beira de um ataque de nervos”? Quem consegue sobreviver na academia após um diagnóstico psiquiátrico? Poderíamos evitar tantas perdas?

Todos querem fazer jus ao padrão UFMG de excelência. Como operar com o sofrimento cotidiano, que se naturaliza nas virtudes do mérito? Os gestores, frequentemente, são impotentes diante da lógica que não contempla a possibilidade de alguém poder se deter um pouco, recuar, pausar, sem ameaçar o patrimônio institucional coletivamente conquistado. As informalidades e insuficiências convidam a pôr em cheque os limites pessoais, subjetivos, éticos. Uma das denúncias mais graves é justamente a do assédio, como sinalizou o Sindifes. Todos se machucam onde a indiferença viceja. O que somos capazes de saber e fazer? Ninguém quer abandonar a cena. É com sofrimento que alguém se submete a uma perícia e se expõe ao risco de um afastamento ou demissão, à possibilidade de uma aposentadoria ou jubilamento, à exclusão quase sempre irreversível.

O sofrimento mental instaura uma incerteza dramática que só pode ser superada se colhemos sua potência, que nos conduz em direção ao outro, à misteriosa alteridade da desrazão. O rei está nu. Honesto é olhar para nossa própria nudez e costurar os projetos capazes de nos (re)conduzir na direção da alegria de estar aqui. A casa é nossa? Então, tudo também pode florescer e alimentar a excelência coletivamente pactuada, mas cega às próprias ameaças. A construção da política de saúde mental da UFMG, que será desencadeada no Fórum desta sexta-feira, dia 20, exige atenção e, certamente, uma vida menos solitária.

*Presidente da Comissão Institucional de Saúde Mental (Cisme) da UFMG

Maria Stella Brandão Goulart*