Aquecer o inverno

Nas páginas da rimeira República

Pesquisa premiada analisa representações oferecidas por três revistas ilustradas sobre a política do início do século 20

Nos 30 primeiros anos do século passado, três revistas de circulação nacional viviam “uma ambiguidade, uma tensão”, nas palavras da pesquisadora Natascha Stefania Carvalho De Ostos, do Programa de Pós-graduação em História, da Fafich. O perfil crítico, opinativo e catártico de suas coberturas, charges e textos também manifestava certo autoritarismo, na medida em que as publicações desmereciam a política institucional e, ao mesmo tempo, segundo Natascha, “desqualificavam os movimentos populares que não se encaixavam no ideal de ação preconcebido pelas elites”.

Durante a pesquisa que resultou em trabalho vencedor do Grande Prêmio UFMG de Teses 2015, Natascha De Ostos esmiuçou dezenas de edições das revistas O malho, Careta e Fon-fon, todas editadas no Rio de Janeiro, então capital federal, e dedicadas a variedades – de receitas de cozinha à moda, da literatura à vida social, passando pela política, sobretudo em seus aspectos de sociabilidade.

“Escolhi essas revistas exatamente porque elas privilegiavam a movimentação cotidiana que envolvia a política institucional da Primeira República”, explica Natascha. “O tratamento dado pelas publicações ao dia a dia de deputados e senadores deixava de lado a parte formalizada de sua atuação para tratar de aspectos mais comezinhos. Meu interesse não residia tanto no Parlamento em si, mas nas representações construídas por importante parcela da imprensa sobre a política.”

A pesquisadora lembra que a elite política se confundia com a elite social, o que justifica em parte uma abordagem que misturava crônica política e colunismo social. O malho, Careta e Fon-fon priorizaram aspectos como a frequência dos congressistas às sessões, a maneira como eles lidavam com prerrogativas e privilégios, a tensão entre a vida pública e privada de deputados e senadores, o encaminhamento das demandas de parentes e amigos e a interação do Poder Legislativo com o Executivo.

“Essas questões não eram ‘dignas’ da cobertura dos jornais diários, e a proposta das revistas era mesmo divertir, com muitas imagens e humor. Havia fartura de desenhistas e caricaturistas -talentosos, como J. Carlos, Kalixto, Storni, e essa linguagem era mais facilmente acompanhada por pessoas com menor competência de leitura”, ressalta Natascha De Ostos.

Corrupção genérica

Charge de Storni, na revista Careta, em 10 de março de 1928
Charge de Storni, na revista Careta, em 10 de março de 1928 Fundação Biblioteca Nacional

Em tempos de restrições ao voto de mulheres e analfabetos e de acordos oligárquicos firmados para prevenir e direcionar conflitos entre setores da elite, as publicações estudadas, embora interessadas em chegar a um público mais amplo, também não estavam livres de compromisso com as elites. A corrupção era denunciada de forma genérica e, claro, existia autocensura. “Ocorreram também episódios de censura por parte do governo, como quando o Marechal Hermes da Fonseca digeriu mal as piadas da revista Careta sobre seu casamento com a caricaturista Nair de Teffé, muitos anos mais jovem que o presidente”, conta Natascha De Ostos.

“Ocorreram também episódios de censura por parte do governo, como quando o Marechal Hermes da Fonseca digeriu mal as piadas da revista Careta sobre seu casamento com a caricaturista Nair de Teffé, muitos anos mais jovem que o presidente”

Com o passar dos anos, de acordo com a historiadora, aumentava a desilusão com a política e seus representantes, e o humor de revistas como O malho, Careta e Fon-fon foi se tornando amargo. Crescia o ceticismo, a desconfiança e o desencanto com os políticos, o que abria espaço para opiniões simpáticas a propostas autoritárias e para o clamor, como diz Natascha, por “um homem forte, tido como capaz e honesto, que pudesse governar com saberes técnicos, dispensando a política, principalmente aquela feita no desacreditado Parlamento”.

“Ao mesmo tempo em que refletiam, em suas páginas, paixão pela política, as revistas não eram capazes de imaginar outros cenários que incluíssem, por exemplo, presença mais ampla e ativa do povo no campo institucional”, diz Natascha De Ostos. “Conceitos restritos acerca da política impediam que se vislumbrassem novas possibilidades e a participação de outros atores que não os representantes das próprias elites.”

Tese: Sociabilidade parlamentar em cena: atores políticos, cotidiano e imprensa na cidade do Rio de Janeiro (1902-1930)

Autora: Natascha Stefania Carvalho De Ostos

Orientadora: Regina Horta Duarte

Programa de Pós-graduação em História

Itamar Rigueira Jr.