Boletim

Nº 1966 - Ano 43 - 20.02.2017

De corpo presente

As imagens da morte

Tese vencedora do Prêmio Capes investiga fotografias de mortos como “corpos” substitutos, criados para presentificar o ente desaparecido

Há cerca de um século e meio, Tolstói registrava em Guerra e paz: “O homem nada pode possuir enquanto temer a morte. Só quem não teme a morte é senhor de tudo.” A máxima do escritor russo talvez ajude a entender por que, mesmo com todo o avanço tecnológico e científico e toda a pluralidade religiosa, ainda seguimos senhores de nada – não raro, senhores nem de nós mesmos e de nossas emoções. A morte segue sendo o mistério maior experimentado pelo homem – a causa maior da angústia e, paradoxalmente, aquilo que também impulsiona a vida enquanto há tempo.

Criança em luto pelo irmão: registro fotográfico da segunda metade do século 19
Criança em luto pelo irmão: registro fotográfico da segunda metade do século 19 The Burn Archive
“O homem nada pode possuir enquanto temer a morte. Só quem não teme a morte é senhor de tudo.”

Interessada nas formas encontradas pelo homem para lidar com esse mistério e com as angústias que ele desperta, a pesquisadora Carolina Junqueira dos Santos, hoje pós-doutoranda em Antropologia na USP, investiu quatro anos na investigação de fotografias de família em contexto de luto. Orientada em seu doutorado por Stéphane Huchet, professor da Escola de Arquitetura e da Escola de Belas Artes, Carolina pesquisou um traço compartilhado por diferentes culturas ao redor do mundo em relação à morte: o estabelecimento de corpos substitutos para presentificar e conferir visibilidade ao que desapareceu. O trabalho foi agraciado em 2016 com o Prêmio Capes de Tese.

Defendida na Escola de Belas Artes, a pesquisa O corpo, a morte, a imagem: a invenção de uma presença nas fotografias memoriais e post-mortem é fruto da hipótese de que as fotografias dos mortos pudessem ser “uma chave de compreensão da relação do homem com as imagens”, como registra Carolina. Trata-se de um estudo sobre o luto, a memória e os esforços feitos para presentificar aquilo que desapareceu, para, dessa forma, lidar melhor com essa perda. “O trabalho de luto é, na realidade, o lugar que o vivo pode dar-se a si mesmo para lidar com a morte do outro. O luto é feito pelos vivos e para os vivos”, escreve a pesquisadora.

Terra do nunca

Lançando mão de imagens familiares memoriais e post-mortem, Carolina estudou a presentificação do morto assegurada por meio desses registros. As fotografias memoriais são retratos de pessoas mortas usados para fins funerários, mas tirados quando o fotografado ainda era vivo. Também se enquadram nessa categoria fotos de outros objetos, quando usadas para o mesmo fim. Fotografias post-mortem (ou mortuárias) têm o próprio cadáver como objeto. 

Criança morta ao lado de uma boneca em registro feito por volta de 1830
Criança morta ao lado de uma boneca em registro feito por volta de 1830 Kasimir Zgorecki / Coleção Frédéric Lefever

“Antigamente, as pessoas morriam em casa, cercadas pelos vivos, diante de todos os olhares que não se recusavam a ver a passagem. Hoje, morre-se escondido na cama de um hospital”

Não se trata de trabalho historiográfico, mas de estudo transdisciplinar sobre as imagens e seus usos. Para Carolina Junqueira, o retrato do falecido, impresso em seu suporte de mediação, realiza uma espécie de animação da pessoa, de forma a possibilitar que a experimentemos (a pessoa, a imagem) como se fosse viva. Ilustra essa ideia o sujeito que, de luto pela perda de um familiar, passa os dedos com carinho sobre a imagem de seu rosto, impresso em uma fotografia. “Mais do que perceber a imagem, nós a experimentamos como se ela fosse o próprio corpo que representa – ou como se, de alguma forma, o substituísse”, afirma Carolina Junqueira.

A pesquisadora lembra que, se no passado era comum o estabelecimento de uma relação mais amigável e cotidiana com a morte, no último século, ela foi se aninhando nos bastidores da vida. “Antigamente, as pessoas morriam em casa, cercadas pelos vivos, diante de todos os olhares que não se recusavam a ver a passagem. Hoje, morre-se escondido na cama de um hospital”, compara. Em razão disso, lembra a autora da tese, alcançamos um tempo em que tudo é fotografável, menos a morte. “Ou melhor, menos a morte que nos afeta. É impensável, hoje, o registro de uma mãe segurando deliberadamente sua criança morta nos braços para a última imagem”, exemplifica, lembrando que a produção de fotografias post-mortem caiu vertiginosamente em desuso a partir de meados do século 20. “É como se a fotografia tivesse se banalizado demais para ser mobilizada nesse momento de dor”, explica a autora.

Santinho de falecimento impresso por volta de 1885
Santinho de falecimento impresso por volta de 1885 F. A. Morrill / The Burns Archive
“Inventamos formas de os mortos continuarem entre a gente. É uma certa ilusão, de alguma forma necessária para nós"

A tese de Carolina Junqueira nos leva a pensar que, se vivemos a era das imagens, como sugerem os filósofos, tal status parece dizer mais do interesse das pessoas em disfarçar imageticamente a aparência da realidade do que, propriamente, registrá-la com precisão e fidelidade. “Reinventar os corpos é o que o homem tem feito ao longo da história”, resume a pesquisadora. E acrescenta: “Ao longo dos tempos, a produção de imagens teve vigorosamente um sentido funerário. A imagem da morte – ainda que não mostrasse o rosto do morto – foi a que mais rondou a história do homem”, sustenta.

“Inventamos formas de os mortos continuarem entre a gente. É uma certa ilusão, de alguma forma necessária para nós. É uma maneira de mantermos algum tipo de relação com aquilo que desapareceu. Passamos a vida tentando salvar as coisas do esquecimento. Por isso, fazemos imagens”, conclui a pesquisadora, que em seu trabalho também reúne suas próprias memórias afetivas.

Ewerton Martins Ribeiro