Vida nova

As calouradas dos anos 1970 vivem em mim

Foi com grande satisfação e boa dose de emoção que compareci ao evento de lançamento do CD e livro Grupo Mambembe – pequena história que virou canção. O livro, escrito pelo historiador, violonista e compositor mineiro Toninho Camargos e publicado pela Editora Recanto das Letras, conta a trajetória do grupo musical Mambembe, que encantou plateias de Belo Horizonte e de outras cidades mineiras, paulistas e gaúchas entre 1974 e 1981(eu estava lá!).

Integrante e um dos fundadores do grupo, o autor narra, com extrema delicadeza, a evolução do Mambembe e do movimento musical independente em Belo Horizonte nos chamados anos de chumbo. Uma história que se confunde, por vezes, com a própria história do movimento estudantil mineiro naqueles tempos difíceis. Um relato imperdível.

Adquiri o livro do Mambembe em uma noite de quinta feira, com direito à dedicatória do autor. Devorei suas 254 páginas, de uma só vez, na tarde chuvosa do sábado seguinte – clima perfeito, chuva e poesia combinam. Um pequeno excerto do capítulo 27 (Circuitos da liberdade) justifica o título do presente artigo: 

No início dos anos 1970, as entidades estudantis passavam a incentivar o fim dos trotes, promovendo calouradas com extensas programações bem organizadas, que incluíam debates, exposições e apresentações artísticas.

Fui testemunha daquele movimento. Na época, até os estudantes secundaristas costumavam beber daquela fonte. Em 1974 (ou foi 1975?), eu era aluno do curso técnico de mecânica na Escola Técnica Federal de Minas Gerais (hoje Cefet-MG), quando, junto com o meu querido e saudoso primo Celinho,fui assistir a um show do Gonzaguinha, promovido pelo DCE da UFMG, no antigo teatro da Rua Gonçalves Dias (hoje Espaço Belas Artes de Cinema). Era tanta gente que não cabíamos todos. Imaginem que o próprio Gonzaguinha ajudou a organizar a bagunça, pedindo que alguns subissem ao palco ou ficassem sentados no chão logo à frente da primeira fileira de cadeiras. No fim, tudo deu certo. Foi muita sorte ver o nosso ídolo assim tão de perto, cantando e tocando o seu violão. Tempos depois, já como estudantes da UFMG, pudemos acompanhar muitos outros eventos artísticos promovidos pelos circuitos estudantis, entre os quais, alguns shows do Grupo Mambembe, contendo músicas e roteiros de altíssima qualidade criados por seus integrantes.

“Não vivo no passado, o passado vive em mim”

Quatro décadas depois, ainda estamos aqui, do outro lado da janela; agora sou professor. Definitivamente, não sou um saudosista. Longe disso, acho até que a geração de hoje, em muitos aspectos, é melhor que a nossa. Mas olhar o passado também é importante, há ensinamentos, coisas para se resgatar. Gosto muito da frase que permeia o DVD Meu tempo é hoje (2003), do Paulinho da Viola: “Não vivo no passado, o passado vive em mim”. Parafraseando o sambista, eu diria que hoje as calouradas dos anos 1970 vivem em mim. Eram eventos mambembes, organizados por entidades estudantis universitárias de todo o país, que recepcionavam os novos alunos com atividades culturais de alto nível. Vale aqui retomar o capítulo 7 do livro do Grupo Mambembe: 

O trabalho cultural dos diretórios e centros acadêmicos nas universidades e faculdades brasileiras ganhava força diante, muitas vezes, das dificuldades ou até da impossibilidade de outras atividades políticas que marcassem essa luta. A promoção da cultura e da arte, particularmente da música popular, tornava-se um meio eficaz de sua ampliação. 

Nos anos 1970, o trote cedeu vez à arte e à música, os cabelos raspados e a cara pintada deram lugar ao debate e à ampliação do entendimento político. Foi notável como o cerceamento das liberdades democráticas despertou e induziu, naqueles anos cinzentos, tamanha criatividade entre os estudantes.

Nos tempos de hoje, percebo que o trabalho cultural dos movimentos estudantis regrediu significativamente em relação aos anos 1970. O tempo dos trotes e das caras pintadas parece ter voltado, tomando o lugar da arte, do debate e do amadurecimento político. Não seria hora de olhar o passado e resgatar o que foi perdido? O movimento estudantil de ontem não poderia ser revivido nos tempos de hoje? Afinal, há tantos outros “Mambembes” Brasil afora, cada um querendo cantar seu grito, como aquele expresso nos versos da música Destinos, que finalizava o show Divisor de águas, do Grupo Mambembe, em 1978:

Vai meu canto por aí
Vai decidir o seu lugar
O direito de lutar
Pelo que é seu, que é seu lugar

O Grupo Mambembe constituiu parte importante da vida de muitos jovens e estudantes de Belo Horizonte que viveram nos anos 1970 e início dos anos 1980. Sua atuação foi marcante para a formação política e cultural de uma geração. Sinto que as calouradas da UFMG nunca mais foram as mesmas depois da sua extinção, em 1982. Deixo aqui o nosso carinho e agradecimento sincero a todos os seus integrantes por suas músicas, letras e textos irretocáveis. Um obrigado muito especial ao Toninho Camargos pelo belíssimo relato feito em seu livro. Ele e Cadinho Faria – outro fundador do grupo – foram o coração e a alma do Mambembe. Os dois integram o time dos grandes compositores da música popular brasileira.


(Luiz Machado - Professor do Departamento de Engenharia Mecânica da UFMG)