Ainda faz sentido pensar em utopias?
Recentemente, a Editora Autêntica lançou edição comemorativa dos 500 anos da obra Utopia, de Thomas More, escrita em 1516, para a qual tive o prazer de escrever um posfácio. A sobrevivência da palavra “utopia” durante tanto tempo nos leva a pensar no que ela significa hoje. Desde sua criação, o termo não parou de inspirar filósofos, literatos, artistas, ativistas e reformadores sociais. Formada por ou- (ou, prefixo grego de negação) e pelo radical tópos (τόπος, literalmente: lugar), designa o “não lugar”, quer dizer, a sociedade excelente que, em razão dessa mesma excelência, não existiria no mundo real.
Há quem diga também, borgianamente, que o prefixo da palavra é eu-, o qual evoca no grego algo bom, de maneira que utopia seria o “bom lugar”. Foi o humanista inglês Thomas More que cunhou o termo, apresentando o projeto político da ilha de Utopia, na qual seus habitantes gozavam de um sistema jurídico igualitário, liberal e justo. Além de More, foram também famosos utopistas do começo da modernidade os filósofos Tommaso Campanella (A cidade do sol, 1623) e Francis Bacon (A nova Atlântida, 1627).
Na contemporaneidade, destaca-se a posição crítica dos marxistas. Para eles, as utopias são irrealizáveis por não se vincularem às condições estruturais concretas das sociedades. Por outro lado, o marxismo heterodoxo de Karl Mannheim e Ernst Bloch acredita no potencial transformador das utopias, capazes de alimentar o desejo de mudanças sociais, oferecendo, assim, vias alternativas para as organizações político-jurídicas reais.
Contudo, o tempo em que vivemos infelizmente se tornou célebre não graças à utopia, mas, sim, a seu gêmeo mau, a distopia. O prefixo grego dys- (δυσ-) significa “doente”, “mal”. Bertrand Russell explica que a mentalidade contemporânea já não consegue conceber como factíveis as sociedades sonhadas por um More, um Campanella ou até mesmo um Marx; falta-nos imaginação – talvez inocência – para tanto. Por isso, os produtos típicos dos delírios político-jurídicos atuais são exacerbações dos traços negativos efetivamente existentes nas sociedades reais. Talvez mais triste do que perdermos a capacidade de sonhar é perdermos também toda a capacidade criativa, mesmo nos pesadelos. Somos obrigados a encarar as nossas próprias sociedades corruptas e desumanizadas em um espelho deformador que apenas nos mostra a que ponto chegaremos, como nos romances tecnototalitários de George Orwell (1984), Aldous Huxley (Admirável mundo novo) e Anthony Burgess (Laranja mecânica).
De fato, no mundo atual, em que posições racistas, machistas, xenófobas e egoístas tomam o primeiro plano nas sociedades ditas “desenvolvidas” e somos surpreendidos com o avanço de programas políticos claramente autoritários, pode parecer ingênuo – e até mesmo perigoso -– pensar em termos utópicos. Parece que o momento exige que esqueçamos qualquer sonho infantil de harmonia universal e que nos concentremos apenas em garantir o que já conquistamos em termos de direitos humanos e garantias mínimas de civilidade, em um movimento defensivo contra os retrocessos sociais que se anunciam. Ainda que considerações assim pareçam consequentes, creio serem profundamente equivocadas, pois são nos momentos sombrios que precisamos, ainda com mais força, pensar utopicamente.
Não se trata, claro, de desconsiderar as duras condições sociais que moldam o século 21, quando se caminha a passos largos para a consolidação do poder de uma aristocracia financeira global intolerante e violenta. Trata-se, ao contrário, de perceber que esse movimento não é natural nem necessário, mas resultado – consciente ou inconsciente – de escolhas humanas. Sem o elemento imaginativo e libertário presente em alto grau no pensamento utópico, corremos o grave risco de confundir a realidade existente com toda e qualquer realidade, antevendo no futuro somente uma repetição do presente.
A utopia nos leva a perceber as possibilidades positivas de transformação social, e só crendo nelas podemos encontrar forças para, agindo contra as condições hoje impostas como “únicas”, não sucumbir ao desespero, ao desânimo e ao pessimismo. Afinal, como diziam certos revolucionários franceses, o momento exige otimismo; deixemos o pessimismo para tempos melhores. A utopia é muito mais do que um sonho pueril, indicando com seu ousado gesto potencialidades que estão para além das regras do jogo que parecem imutáveis, animando toda uma tradição que, desde as revoltas de escravos na Antiguidade até os movimentos negros e feministas de nossos dias, indica a necessidade ética e a possibilidade político-econômica de construir mundos melhores e mais justos.
Se deixarmos de acreditar na transformação social radical, não haverá mais sentido em nossa atividade, especialmente na Universidade, locus utópico por excelência, onde tudo que parece assentado, firme e estável pode ser questionado e modificado. Ser utópico hoje significa não se deixar enganar pela ilusão da realidade única e compreender que sonhar acordado, para usar uma expressão de Ernst Bloch, já é uma revolução em um mundo no qual todos os podres poderes nos convidam ao sono sem sonhos da acomodação e da indiferença. Utopia, mais do que uma bela e vetusta palavra, é, pois, uma dimensão inegociável e fundante da experiência irrepetível de sermos, entre nós, humanos.
(Andityas Soares de Moura Costa Matos - Professor de Filosofia do Direito da UFMG)