Dois novos craques

Nau sem rumo em mar revolto*

Nos últimos 20 anos, dois projetos de política externa foram postos em prática no Brasil.

FHC apostou em valores tipicamente associados ao mundo liberal: democracia, economia de mercado, abertura comercial e direitos humanos. Alinhou-se ideologicamente, assim, às nações da América do Norte e da Europa. A opção pelo cânone ocidental, apesar de evidente, acomodava nuanças em seu interior. Seria exagerado tratar a política externa de Cardoso como puro adesismo.

Para projetar o Brasil no mundo, ele apoiou-se largamente no chamado “poder brando”, isto é, na construção de imagens positivas e na difusão de valores instrumentais ao país, sustentados por algum lastro material – seja a estabilidade macroeconômica, seja a higidez institucional, seja o respeito às principais normativas internacionais.

O próprio presidente, em pessoa, tomou para si a missão de representar o Brasil no exterior. Dessa maneira, alçou a diplomacia presidencial a um novo patamar. Cardoso tinha uma estratégia que, com erros e acertos, foi devidamente implementada. Como resultado, o país cresceu na escala internacional de nações.

Lula, por seu turno, rompeu com alguns dos pilares diplomáticos do seu antecessor. Buscou um caminho autonomista para a política externa. Tensionou o sistema de valores vigente, pregando a revisão da ordem mundial. Por intermédio do bloco BRICS, aproximou-se de países como Rússia e China – rivais da aliança liberal transatlântica, encabeçada pelos EUA. 

Seu plano de ação envolveu menos conteúdo moral, mais investimento em “poder duro”. Aumentou significativamente, durante os seus mandatos, o gasto com as forças armadas, a máquina diplomática, os programas de cooperação internacional e a integração regional. O presidente mostrou-se, com o passar dos anos, um entusiasta da diplomacia de mandatários. Se FHC havia sido o pioneiro, foi Lula quem mais empregou a tática.

Ainda que problemas houvesse aqui e acolá, esse projeto de política externa rendeu dividendos. O Brasil, que já despontava na gestão presidencial anterior, atingiu os píncaros na primeira década do século 21. 

Os últimos anos, contudo, têm sido frustrantes. 

Com Dilma Rousseff, houve a “normalização da curva”. Seu aparente desinteresse pelas temáticas internacionais, associado às circunstâncias demandantes da política doméstica, devolveu a diplomacia brasileira ao padrão de meados dos anos 1990.

Qual foi o plano de ação internacional de Rousseff nos cinco anos em que esteve à frente da Presidência da República? É difícil dizer. Houve muita ambiguidade e, para a maior parte dos intérpretes, omissão. Parece consensual o diagnóstico de que, entre 2011 e 2016, o Brasil declinou no imaginário ranking das nações.

A questão que se impõe, portanto, é a seguinte: como Temer pretende lidar com a diminuição da estatura internacional do país? Quase um ano após a mudança na chefia do Planalto, ainda é incerto o rumo que se seguirá nas relações internacionais.

Privilegiaremos a liga de Estados liberais, mesmo em face da eleição de Donald Trump nos EUA? Ou buscaremos o beneplácito de Rússia e China? Toleraremos as agressões aos direitos humanos no Irã, condenando-as apenas quando acontecerem na Venezuela? Engrossaremos o coro pela reforma do Conselho de Segurança da ONU ou, alternativamente, deixaremos a questão para os “cachorros grandes”? Abraçaremos a fórmula de comércio multilateral da Organização Mundial do Comércio (OMC) ou, em oposição, iremos atrás de acordos de preferências comerciais com a União Europeia e a Ásia-Pacífico?

Os sinais emitidos até o momento são ambivalentes e não autorizam ilações ou juízos resolutos. Todavia, como diriam os anglo-saxões, “não dá para comer o bolo e, ao mesmo tempo, guardá-lo para depois”. Escolhas dilemáticas precisam ser feitas.

E não é só isso. O persistente silêncio brasileiro acerca de temas relevantes da agenda geopolítica – guerras cibernéticas, ameaças energéticas, perturbações ambientais, intervenções humanitárias, uso de drones e outros autômatos em combates – é um incômodo para a nossa população e o resto do mundo. 

As notas do Ministério de Relações Exteriores à imprensa, além de lacônicas e pasteurizadas, não diferenciam as ênfases de cada governo – o anterior e o corrente – sobre essas polêmicas. Depois de um início retumbante, com dura condenação de bolivarianos e “passa fora” na Unasul, a voz do chanceler sumiu.

Alguém saberia afirmar, por exemplo, o que pensa a atual liderança do Itamaraty sobre o processo de paz na Colômbia? A crescente presença chinesa na América Latina? Os rumos da União Europeia após a saída do Reino Unido? A tragédia humana na Síria? A anexação ilegal da Crimeia? A degradação da situação no Sudão do Sul e no Iêmen?

Nossa história recente é pedagógica sobre os riscos do desengajamento internacional. Temer pode perseguir uma rota parecida com a de FHC ou, quem sabe, reviver Lula na diplomacia. Pode combinar aspectos de trajetórias pregressas ou inventar fórmula original. Só não pode abdicar de uma estratégia.

*Versão resumida deste artigo foi publicada no jornal Folha de S. Paulo, em 3/1/2017

**Professor de política internacional da UFMG, pesquisador do CNPq e autor de Política externa na Nova República: os primeiros 30 anos

(Ed. UFMG, 2017)

Dawisson Belém Lopes**