Inverno, aos 50

Refúgio e liberdade

Escritor e acadêmico congolês inicia temporada na UFMG como residente; iniciativa é parte de acordo com rede internacional

O campus Pampulha abriga, desde o início de junho, o primeiro escritor estrangeiro que chega por meio do acordo da UFMG com a International Cities of Refuge Network (Icorn), rede de cidades e regiões que recebe escritores e artistas refugiados que sofrem com a falta de liberdade de expressão em seus países de origem. Há 11 anos, Felix Ulombe Kaputu, da República Democrática do Congo (RDC), foi obrigado a deixar seu país, onde trabalhava como escritor, pesquisador e professor universitário.

­A UFMG, por meio da Diretoria de Ação Cultural (DAC), é responsável por todos os aspectos relacionados à presença e atuação de Kaputu no Brasil. O acordo, que prevê estada pelo período de um ano, prorrogável por mais um, foi objeto de esforço de três anos, liderado pela DAC, que possibilitou a adaptação do convênio padrão proposto pelo Icorn, uma vez que as parcerias são geralmente estabelecidas com cidades.    

Felix Kaputu lecionou até 2006 na Universidade de Lubumbashi, província de Katanga, onde obteve os títulos de doutor em literatura inglesa e literatura comparada. Na volta de uma viagem a trabalho, foi detido pela polícia do regime, sob acusação de tráfico de armas em benefício da oposição. “Foi uma acusação absurda. Meu ‘crime’ era estar aberto a todos os estudantes, independentemente de crença política, e pregar a crença na ciência e não em partidos”, afirma o escritor, que ficou quatro meses encarcerado em condições “horríveis, inimagináveis”. Depois de liberado, soube que sua vida estava em risco e decidiu sair da República Democrática do Congo. “No mínimo, eles não tinham certeza sobre minha posição com relação ao governo e sabiam que eu contava com vasta rede de contatos no exterior, o que me tornava inconveniente”, diz Kaputu. 

Felix Kaputu passou um ano em Harvard (EUA), pesquisando aids e gênero, lecionou na New York State University, esteve em Tóquio e Kioto, no Japão, para estudos – sob perspectiva comparada – de xamanismo e religiões africanas e japonesas e passou pelo Massachusetts College of Artsand Design (EUA), onde ensinou literatura, arte e filosofia africanas. Nos últimos anos, lecionou e fez doutorados em antropologia e estudos interdisciplinares na Bélgica. Em 2016, esteve na Polônia, já com suporte do Icorn.

Autor de dois livros acadêmicos e cinco de ficção – entre eles Jo-Mary: black free slave (Paperback), que trata da saída de negros escravizados da África, e Wall Street re-berlinguel’Afrique (L’Harmattan), sobre a reconquista do continente africano por meio das guerras econômicas –, Kaputu vai aproveitar a temporada no Brasil para escrever nova obra, em que abordará os contrastes entre discurso e ações de políticos e governantes.

Aprender português

O escritor e acadêmico deixou, na RDC, esposa e três filhas, que ele já reencontrou em seu período de exílio, mas que não têm mais permissão de deixar o país. Ele diz que não está feliz com essa situação, mas que se realiza porque se sente útil nos países que o têm abrigado e porque contribui, a ­distância, com colegas e estudantes na Universidade de Lubumbashi. “Já não choro mais, porque estou ainda mais produtivo. Minha missão não foi comprometida, tornou-se universal.”

Fluente desde criança em francês, idioma dos colonizadores belgas, e em inglês, em razão do contato com a família materna, na vizinha ­Zâmbia, Kaputu diz que está ansioso por aprender português. “Quero poder me virar sozinho, compreender melhor as questões locais nos estudos de antropologia e falar da África em português para os estudantes brasileiros”, explica Félix Kaputu.

Felix Kaputu: missão universal
Felix Kaputu: missão universal Carol Prado/UFMG

Oportunidade preciosa

“Esta é uma oportunidade preciosa para a UFMG, não apenas porque se trata de um refugiado político que necessita de apoio, mas também porque o professor Felix Kaputu é um artista e acadêmico com trajetória relevante, que tem muito a contribuir com nosso fazer acadêmico, por meio da interação de saberes”, comemora a vice-reitora Sandra Goulart Almeida, que assinou em janeiro deste ano o convênio com o Icorn. A entidade conta com a parceria de 65 cidades e já apoiou mais de 170 artistas e escritores, selecionados com aval do PEN International.

A diretora de Ação Cultural, Leda Martins, que coordena o programa na UFMG, destaca a iniciativa como forma de a UFMG reafirmar seu compromisso com a liberdade de expressão. “A Universidade tem história de luta pela democracia, e o direito de expressão é o que faz uma sociedade plena. A presença de Félix Kaputu será muito rica para a UFMG, já que ambos valorizam a transversalidade de conhecimentos”, diz Leda, que esteve nos últimos três encontros do Icorn, na Holanda, na França e na Noruega, país-sede da organização.

Em todas as etapas do processo de abrigo do escritor exilado, a DAC conta com apoio de comitê formado por professores de diversas áreas do conhecimento e equipe de administração. O comitê indicou um de seus membros, a professora Lucia Castello Branco, da Faculdade de Letras, para atuar como orientadora do plano de trabalho de Kaputu na Universidade.

Itamar Rigueira Jr.