Malfeitos no Brasil colonial
Historiadora analisou denúncias e condenações de governantes para demonstrar a força do conceito de corrupção no Brasil colonial
Há alguns anos, quando procurava documentos nos arquivos da Universidade de Coimbra, em Portugal, para estudos do seu primeiro pós-doutorado, a professora Adriana Romeiro, do Departamento de História, deparou-se com cinco panfletos manuscritos de conteúdo satírico, datados de 1732. Distribuídos em Vila Rica, os textos desancavam o governador das Minas Gerais, Dom Lourenço de Almeida, que partia de volta a Lisboa, depois de 12 anos no poder. Descreviam falcatruas, falavam em cobiça e enriquecimento ilícito e convocavam para o enterro simbólico do mandatário.
Aquele achado foi o ponto de partida para os estudos de um novo pós-doutorado, desta vez sobre corrupção no Brasil colonial. O resultado das pesquisas, realizadas sob supervisão de José Martínez Millán, na Universidad Autónoma de Madrid, acaba de ser publicado no livro Corrupção e poder no Brasil: uma história, séculos XVI a XVIII (Autêntica).
“A corrupção nos tempos coloniais é pouco estudada em Portugal e no Brasil”, afirma a pesquisadora. “Prevalece a crença de que o patrimonialismo e práticas como tráfico de influência e abuso de autoridade eram consideradas legítimas e, por isso, não configuravam atos de corrupção. Mas as sátiras mostram o contrário, e encontrei outras evidências de que havia, sim, o conceito de corrupção.”
De acordo com Adriana Romeiro, se hoje a palavra define práticas ilícitas na confusão entre o público e o privado, até o século 18 corrupção era sinônimo de putrefação do corpo social e político, em metáfora referente ao corpo biológico. Ela explica que os reis e a população não condenavam o enriquecimento das autoridades, desde que se desse com discrição e dentro de determinados limites. “Os governantes estavam ‘autorizados’ a aproveitar oportunidades geradas pelos cargos, mas não podiam lançar mão de violência e tirania para se apropriar do patrimônio da Coroa e de bens privados ou comprometer o bem comum”, diz a pesquisadora.
Condenado ao ostracismo
Adriana Romeiro ressalta que algumas autoridades acabaram presas e tiveram seus bens confiscados; outras tiveram sorte diferente, como D. Braz Baltazar da Silveira, que governou a capitania de São Paulo e Minas do Ouro, de 1713 a 1717, chegou pobre ao Brasil e voltou rico à metrópole, mas passou incólume pela chamada “inspeção”. “D. Braz soube respeitar as fronteiras entre os bens pessoais e o bem público”, conta a autora. O caso de D. Lourenço foi atípico. Suas relações com a família real o livraram da inspeção, e ele manteve o patrimônio amealhado de forma ilícita, mas foi relegado ao ostracismo político e social.
Em Corrupção e poder no Brasil, Adriana Romeiro começa por mostrar que a corrupção nos tempos coloniais ainda não recebe a devida atenção na historiografia brasileira. Em seguida, ela destaca que, do século 16 ao 18, autores como Diogo do Couto, Padre Antonio Vieira e Tomaz Antonio Gonzaga problematizaram a questão da corrupção, favorecida por fatores como as grandes distâncias entre Portugal e territórios, como a Índia e o Brasil. “No conjunto de poemas Cartas chilenas, Gonzaga mobiliza, pouco antes da Inconfidência Mineira, repertório do século 16. O conceito pouco mudou em três séculos”, salienta Adriana.
No terceiro capítulo do livro, a pesquisadora trata dos tipos de crime atribuídos aos mandatários coloniais – escândalos sexuais, festas patrocinadas por dinheiro público, fuga de confrontos militares –, dos canais de denúncia e das penalidades. Finalmente, ela se dedica à história de D. Lourenço Almeida, explorando, entre outros documentos, inventário que foi alvo de disputas familiares após sua morte, em 1750. “O caso de D. Lourenço chama a atenção por sua voracidade, embora ele não tenha sido a autoridade que mais enriqueceu no Brasil”, comenta.
Adriana considera que abriu uma frente promissora de pesquisas. “Uma contribuição importante do trabalho foi mostrar que, embora ilegalidades fossem toleradas como um preço a ser pago para o funcionamento do império português, havia um limite moral entre o bem comum e o bem privado.”
Livro: Corrupção e poder no Brasil: uma história, séculos XVI a XVIII
Autora: Adriana Romeiro
Editora Autêntica
400 páginas / R$ 54,90