Boletim

Nº 1995 - Ano 2017 - 16.10.2017

Maior, melhor e abrangente

Direito colonizador

O racismo, problema tão arraigado no Brasil, e a falta de oportunidades dele decorrente jamais poderão ser resolvidos eliminando algumas de suas ramificações mais capilares, que são os indivíduos.

Entender minimamente o sistema penal brasileiro provoca calafrios. Perceber que a punição nada mais é do que a individualização de problemas intrinsecamente sociais, ou melhor, que a punição transforma pessoas em bodes expiatórios, inverte decisivamente a ideia de dignidade, já que o sujeito  é transformado em mero objeto de  guerra.

Recorro a um pensamento que tomo como ponto de partida deste texto: o sistema penal exemplifica que individualizar problemas sociais nunca foi uma boa estratégia. São duas esferas diferentes, operando em dois âmbitos distintos. Talvez a única função de “pegar qualquer pessoa para Cristo” seja a de usá-la como exemplo para demonstrar que as nossas regras são efetivas e, assim, impedir que outros cometam a mesma infração, ou pelo menos, pensem duas vezes antes de cometê-la.

Pois bem, é com base nesse ponto de partida que se torna incoerente o tratamento dado à fraude no sistema de cotas raciais na UFMG, especialmente no curso de Medicina. Recente matéria do jornal Folha de S. Paulo expõe nomes e rostos dos alunos que subverteram o sistema. Esses alunos, com redes sociais abertas, com colegas e conhecidos no ambiente da UFMG, ficaram, de certa forma, desnudos na praça pública que hoje é a internet. O movimento negro e seus simpatizantes veem a exposição como uma vitória. Inocentemente, caímos na armadilha do mesmo sistema que proclamamos combater. Individualizamos o problema, ao utilizarmos a mesma estratégia da qual o sistema penal lança mão para esmagar a juventude negra.

Esse é um dos principais problemas de se condensar lutas e reivindicações sociais na forma de direitos, leis e regras. Passamos a lutar dentro do cerco da lei, que é burguesa, e essencialmente individualizante. O racismo, problema tão arraigado no Brasil, e a falta de oportunidades dele decorrente jamais poderão ser resolvidos eliminando algumas de suas ramificações mais capilares, que são os indivíduos. Mesmo se eliminarmos todos os fraudadores e a fraude, o racismo institucional e a elitização universitária continuarão a existir. E não estou aqui dizendo que nada devemos fazer para evitar esse tipo de burla no sistema de cotas raciais, muito menos estou me posicionando contra a possível perda de vagas conquistadas por esse meio. O que eu estou defendendo é a mudança do referencial punitivo para um modelo de disputa de consciências que construa mais do que reprima, ridicularize e exponha. Que sejamos capazes de reverter as fraudes sem ter de utilizar modelos ineficazes de punição.

Durante o traumático ano de 2013, a Faculdade de Direito foi palco de um dos mais escandalosos casos de racismo da história recente da UFMG. A solução encontrada pela Universidade, vista por muitos como vitoriosa, foi a de aplicar pesadas sanções, nos termos das regras da instituição, contra três alunos. Dois anos depois, em um movimento autoritário, a Faculdade instalou catracas em sua portaria, o que serviu para separar o povo da sua Universidade, que é um espaço público. Movimento perfeito para os dirigentes. Sem tocar na ferida profunda que é o racismo no ambiente universitário, varremos nossos problemas para o centro da sala e, com medidas individualizantes, jogamos um belo tapete por cima.

Ao fazer julgamentos morais sobre as atitudes de fulano ou beltrano que formalmente subverteram o sistema público, omitimos que, mesmo dentro dos critérios formais, uma série de alunos que estudaram em escolas particulares a vida inteira ocupam grande parte das vagas reservadas e quase todas de livre concorrência. Ora, a universidade, como bem público, depende de todos os cidadãos brasileiros para existir. Então por que alunos de classe média alta, que sempre estudaram nos melhores colégios e representam menos de 5% da população, não deveriam se sentir culpados de sempre ocupar metade das vagas de um bem público? Por que egressos do Cefet, do Coltec e do Colégio Militar, que anteriormente estudaram em escolas privadas, não deveriam se sentir moralmente culpados de utilizar as cotas como atalho para ingresso na UFMG? Os dois casos anteriores e a fraude são situações injustas. Contudo, a lei e o direito, apoiados numa mídia sensacionalista, distorcem o nosso olhar e nos fazem perceber apenas uma face menor e controlada da injustiça. 

Nada melhor para o Estado do que deixar seus “súditos” guerreando entre si, por míseros 25% de vagas. Que se odeiem, que se crucifiquem, enquanto os “soberanos” continuam tranquilamente estrangulando a universidade com os cortes  de verbas,  construindo menos universidades e mantendo  critérios para cotas que continuam fazendo “a água correr  para o mar”. Enquanto isso, damos audiência a quem só quer fazer manchetes e construir um mundo de soluções simplistas. Continuemos a crucificar em praça pública pessoas que não seguem à risca a lei do “emancipador” direito. Continuemos a nossa batalha lateral enquanto nos sufocam de cima para baixo.

Ícaro Del Rio Pertence Gomes, estudante do terceiro período do curso de Direito da UFMG