Gente nova no pedaço

O novo surto anticomunista e a democracia em risco

No Brasil, existe uma forte tradição anticomunista desde os anos 1930. Discursos antissocialistas e antianarquistas circulavam já no século 19, porém, no século seguinte, dois eventos iriam conferir bases mais profundas ao fenômeno, gerando enorme impacto: a Revolução de 1917, na Rússia, que deu origem ao experimento bolchevique, e a insurreição revolucionária de 1935, no Brasil. O movimento foi alcunhado pejorativamente de “Intentona”, para dar-lhe marca mais negativa (significa intento louco), e forneceu boa parte do arsenal propagandístico usado nos anos posteriores. A “Intentona” deu origem não somente à construção de um imaginário, mas ao estabelecimento de uma celebração anticomunista ritualizada e sistemática, com monumentos e paradas cívicas. A violência do episódio e os objetivos dos revolucionários foram exagerados e caricaturados, para aumentar o impacto da propaganda e insuflar o medo.

Assim, a partir dos anos 1930, o anticomunismo tornou-se tema perene no cenário brasileiro e, em certas ocasiões, inspirou mobilizações direitistas de graves consequências. O combate ao perigo vermelho serviu de justificativa para os golpes de 1937 e 1964 e para as ditaduras subsequentes. Nos documentos fundadores de ambos os regimes ditatoriais – a Constituição de 1937 e o Ato Institucional de 1964 –, o tema aparece em destaque. No preâmbulo da Carta de 1937, está escrito que a extensão da infiltração comunista no Brasil exigia remédio radical, ou seja, a ditadura, enquanto o AI prometia drenar o “bolsão bolchevista” e “destituir o governo que se dispunha a bolchevizar o país”. Foram muitas décadas de intensa campanha anticomunista, com destaque para representações negativas sobre a União Soviética e demais países socialistas, apresentados como o inferno na terra, e fortes cargas também sobre figuras nacionais, como Luiz Carlos Prestes. 

Recentemente, essa tradição foi reapropriada na luta contra os governos petistas e adaptada aos novos tempos, com alguns atores da direita falando em “comuno-petismo” para conectar o partido de Lula às imagens negativas tradicionais sobre o comunismo histórico. Como em ocasiões anteriores, no atual surto anticomunista, os atores são movidos tanto por convicção quanto por oportunismo. No último caso, trata-se da indústria do anticomunismo, ou seja, a estratégia de exagerar a força da esquerda para explorar o medo, visando a ganhos políticos e/ou pecuniários. Voltamos a ter uma indústria do anticomunismo muito atuante, com blogueiros e gurus da direita que ganham a vida explorando a repulsa ao vermelho. Outra forma de manipulação oportunista do fenômeno, e também atual, é chamar de comunista qualquer projeto de mudança social, para criar sensação de grave ameaça e mobilizar mais gente para o campo conservador.

O conservadorismo tem como base o medo às mudanças e a defesa da ordem tradicional. Isso tem relação com interesses materiais, obviamente, pelo temor de perder posições sociais e patrimônio ou, até mesmo, o status social. No entanto, um dos pontos essenciais é o medo de mudanças nos valores e nos comportamentos. Trata-se da defesa da família tradicional, por exemplo, com a recusa às opções sexuais não convencionais, sentimentos que geralmente estão lastreados em preceitos religiosos. Como a esquerda costuma abraçar propostas progressistas também em termos de valores e comportamentos, frequentemente ela atrai o ódio conservador pelo prisma da defesa da moralidade. Há 100 anos, o fato de a URSS ter legalizado o divórcio e o aborto mobilizou reações iradas. O tema contemporâneo é a diversidade sexual, que muitos conservadores conectam com o perigo vermelho, como se pode ver nos cartazes utilizados em protestos contra algumas exposições de arte.

De certo modo, é paradoxal que o PT seja alvo de discursos anticomunistas, já que o partido surgiu como adversário dos PC e com eles disputou a hegemonia sobre a opinião de esquerda. Como, de fato, tornou-se o novo partido hegemônico à esquerda, o PT passou a atrair os ataques dos grupos antiesquerdistas. A sua chegada ao poder aumentou a indisposição dos grupos de direita que têm pavor a qualquer política de viés social, sejam bolsas, quotas raciais, entre outros. E o tema religioso e moral exerce papel importante, pois grupos cristãos conservadores atribuem à esquerda toda a culpa pelas mudanças de comportamento entre os jovens. O problema é que a convergência entre antipetismo e anticomunismo implica enorme manipulação, pois o PT não é um partido comunista (embora possa ter alguns militantes com esse perfil) e sequer aplicou medidas socialistas, apenas algumas ações moderadas visando à distribuição de renda. Isso não é socialismo. A contratação de médicos cubanos e as boas relações com a esquerda latino-americana não tornam o PT um partido comunista. O uso do anticomunismo contra o PT é fenômeno que se explica pela mescla de conservadorismo, oportunismo e ignorância (sobre o significado de socialismo e comunismo).

Vivemos tempos de instabilidade e de risco. Nas ocasiões anteriores em que o anticomunismo se tornou força política relevante, sofremos golpes e fomos governados por ditaduras. Quem preza a democracia e a liberdade deveria estar alerta, para não permitir que a radicalização direitista e conservadora destrua o que sobrou das nossas instituições e dos nossos direitos coletivos e individuais.

Rodrigo Patto Sá Motta – professor do Departamento de História da UFMG e autor do livro Em guarda contra o perigo vermelho: o anticomunismo no Brasil