Espaço das diferenças

Sobre confeiteiros e seus quitutes

Com um governante deposto, caos nas ruas, instabilidade política, quem se preocuparia com uma simples confeitaria – a não ser o próprio confeiteiro?

A preocupação de Custódio, o confeiteiro, parecia mesmo prosaica. Ele havia decidido renovar a pintura da tabuleta do nome do seu estabelecimento, a Confeitaria do Império, mas o regime monárquico caíra da noite para o dia, e, agora, o atormentado confeiteiro não sabia se deveria manter a antiga denominação ou mudá-la (Confeitaria da República ou algo mais neutro, como Confeitaria do Catete, rua em que ficava o comércio). Não havia solução fácil. À balbúrdia política, somem-se os ânimos exaltados e as ideologias à flor da pele: qualquer nome deflagraria repúdio e agressões. E assim nos compadecemos de Custódio, ao longo de Esaú e Jacó, romance do gênio que decifrou o Brasil para sempre, Machado de Assis. E é esse Custódio que, de certo modo, representa o pesquisador brasileiro. 

A começar pela própria compreensão pública do papel e do valor da ciência, o cientista é folcloricamente visto como um desconectado da realidade, tal como Custódio, que, no calor da Proclamação da República, preocupava-se apenas em como deveria ficar o nome de sua confeitaria. A economia patina, as cifras de desemprego são alarmantes, o mundo político está em ebulição, e surgem uns acadêmicos clamando por “verbas para pesquisas”? Por favor...

Por que apoiar uma atividade vista pela maior parte da população como derrisória, frente ao que é produzido pelas potências científicas? Por que dar ouvidos a pessoas que falam de coisas complicadas, em linguagem difícil, acerca de questões que parecem nada ter a ver com os problemas cotidianos? Por que entronizar em um projeto de país uma atividade aparentemente tão importante quanto quitutes e guloseimas?

A primeira batalha do pesquisador brasileiro é, pois, por compreensão – nem ainda “reconhecimento”, frise-se, mas simplesmente “compreensão” – do valor do seu trabalho. Se, de fato, nosso desenvolvimento científico está aquém dos grandes centros, apenas o protagonismo brasileiro poderá responder a inúmeras questões inerentes às realidades cultural, social, econômica e sanitária do nosso país. Nenhuma nação alcança êxito social e econômico sem respaldo de educação, cultura e ciência. Mas não há consenso nacional acerca disso. Sintomaticamente, a extinção do Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação, em 2016, não causou indignação paneleira nem mobilizou a sociedade civil. Se falta apoio governamental, falta-o também na sociedade: um dos corolários é a ausência de uma cultura de doação para financiar pesquisas, diferentemente de outros países em que essa tradição é arraigada, inclusive com aparato fiscal a estimular a prática, por meio de dedução de impostos. Não é possível uma transformação dessa mentalidade sem uma postura ativa da comunidade científica brasileira, sem uma mudança na maneira como pesquisadores se relacionam com a sociedade – falar de seu trabalho em linguagem acessível, investir em divulgação científica de qualidade, sensibilizar a sociedade, o empresariado e a classe política sobre a importância das ciências brasileiras para o desenvolvimento do país. A Universidade pública deve ser figura de proa nesse movimento.

Custódio preocupava-se com os efeitos da mudança de regime na sua atividade. Essa é também a nuvem que assombra cientistas brasileiros, especialmente a cada transição governamental. Bolsas serão mantidas? Financiamentos aprovados serão efetivados? Haverá editais para pesquisa? 

E, se há inquietude sobre o impacto do cenário macropolítico na atividade científica, é, mais uma vez, porque não há entendimento de que se trata de uma atividade estratégica, que deveria ter sólidas garantias institucionais e gestão técnica, acima de questões partidárias e de ideologias iracundas. Do contrário, não assistiríamos ao desolador cenário da ciência local. Desde 2014, as verbas de pesquisa estão sendo progressivamente cortadas. Para 2018, o orçamento foi reduzido ainda mais, asfixiando as principais agências financiadoras. Laboratórios estão sendo esvaziados, projetos são abandonados, e o êxodo de pesquisadores rumo ao exterior se intensificou. Alunos deixam de fazer pós-graduação por falta de bolsas ou fazem suas pesquisas em situação de grande vulnerabilidade financeira. A precariedade do financiamento ganha tons aviltantes, quando se compara o orçamento do CNPq, em 2017 (R$ 1,3 bilhão), com os gastos com auxílio-moradia para autoridades da União, no mesmo ano (R$ 1,6 bilhão).

A redução de verbas e a instabilidade política estão abalando os alicerces da ciência brasileira, impedindo a continuidade de projetos, a formação de recursos humanos e o necessário incremento de qualidade na produção nacional. Se os pares internacionais não têm preocupações em relação às garantias que possibilitam sua atividade, os pesquisadores brasileiros, tais como o confeiteiro Custódio, vivem atormentados com as vicissitudes e a volatilidade do cenário político nacional.

Sem quem o defenda fora dos círculos acadêmicos, sem compreensão pública do seu papel, sem inserção em um projeto de país, sem garantias e sem apoio, o cientista brasileiro é um resistente. Mas a resistência conjuga-se com a esperança, apesar da dura realidade se esforçar por extirpá-la de nós. Afinal, como lembra o conselheiro Aires, arguto personagem de Esaú e Jacó, a esperança, “a meninice do mundo”, tem suas incoerências. Grávidos dessa esperança incoerente, resistamos. 

Leonardo Cruz de Souza -  Médico neurologista, doutor em Neurociências pela Université Paris 6, professor adjunto do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina da UFMG 

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