A abolição por vir
Em livro, professores da Faculdade de Direito demonstram que o trabalho escravo segue praticamente impune em Minas Gerais
Na novela O outro lado do paraíso, da Rede Globo, a personagem Sophia, interpretada por Marieta Severo, mantinha os trabalhadores de uma mina de esmeraldas em condições de trabalho análogas às de escravos, o que terminou por lhe render a prisão, ainda que por pouco tempo. Em diversas localidades do território brasileiro, as condições de trabalho retratadas na ficção são, de fato, uma resiliente realidade – assim como a impunidade dos criminosos.
Só em 2016, quase 900 trabalhadores foram resgatados no Brasil em situação precária. “Minas Gerais foi o estado recordista, onde as equipes de fiscalização identificaram 328 trabalhadores em situação semelhante à de escravos”, registram os professores da Faculdade de Direito Carlos Haddad e Lívia Miraglia na introdução do livro Trabalho escravo: entre os achados da fiscalização e as respostas judiciais.
Disponível nas versões impressa e digital, o volume reúne resultados de investigações realizadas pela Clínica de Trabalho Escravo e Tráfico de Pessoas da Faculdade de Direito da UFMG, que presta assistência jurídica integral e gratuita a vítimas desses crimes. Os pesquisadores criaram no Google um mapa com os locais de Minas Gerais em que auditores fiscais do trabalho constataram, de 2004 a 2017, a ocorrência de trabalho análogo ao de escravo. O levantamento pode ser acessado por meio deste link.
Na obra, materializada com a colaboração dos pesquisadores Lucas Fernandes Monteiro, Marcela Rage Pereira e Marina de Araújo Bueno, os especialistas investigaram o abismo entre o número de denúncias que chegam a às instituições que lidam com questões do mundo do trabalho no país – Ministério do Trabalho, Polícia Federal, Ministério Público do Trabalho, Ministério Público Federal, Justiça do Trabalho e Justiça Federal – e o número de julgamentos que de fato ocorrem, além da lentidão do trâmite desses processos judiciais. “A morosidade, fator que prejudica a efetividade da prestação jurisdicional, é problema antigo, mas que não tem suas causas investigadas a fundo, o que contribui para a perpetuação do problema”, explicam.
Avanços e limitações
Os elementos legais que configuram o trabalho análogo ao de escravo estão estabelecidos no artigo 149 do Código Penal e na Lei 10.803, que o modificou em 2003. “A Lei foi importante para o enfrentamento da escravidão, pois, anteriormente, o tipo penal era apresentado de forma sintética, não fornecendo elementos suficientes para identificação das formas pelas quais se reduz o trabalhador a tal condição”, escrevem os autores. Nos textos são indicadas quatro formas de se reduzir um trabalhador à condição análoga à de escravo: submissão a trabalhos forçados, submissão a jornadas exaustivas, sujeição a condições degradantes de trabalho e restrição da locomoção em razão de dívidas contraídas com o empregador.
No entanto, essa legislação tem sido incapaz de promover uma mudança dos paradigmas trabalhistas brasileiros, e o caso de Minas Gerais é emblemático. De 373 fiscalizações realizadas no estado entre 2004 e 2017 com base em denúncias, constatou-se trabalho escravo apenas em 157 casos, o que já sugere a fragilidade dos mecanismos jurídicos de identificação objetiva da prática. Em relação a esses casos, foram instaurados 118 inquéritos policiais, que resultaram, por sua vez, no ajuizamento de 79 ações penais. Consequentemente, 35 sentenças foram proferidas e resultaram em apenas 14 condenações envolvendo 21 réus. “Somente três dessas decisões transitaram em julgado”, relatam os pesquisadores. “Em um dos processos, consumou-se a prescrição retroativa da pretensão punitiva. No segundo processo, foram aplicadas multa e pena restritiva de direito. No terceiro caso, expediu-se mandado de prisão para execução da pena de quatro anos e seis meses de reclusão.”
Resumo da ópera: os 157 casos de trabalho escravo reportados pelos auditores fiscais resultaram em uma única prisão.
[Versão ampliada desta matéria será publicada nos próximos dias no Portal UFMG.]
Livro: Trabalho escravo: entre os achados da fiscalização e as respostas judiciais
Coordenação: Carlos Haddad e Lívia Miraglia
Colaboração: Lucas Fernandes Monteiro, Marcela Rage Pereira, Marina de Araújo Bueno
Editora Tribo da Ilha (Compras podem ser feitas pelo site)
296 páginas / R$ 70