Censo no Afeganistão
Demógrafos da UFMG desenvolvem, a convite da ONU, projeto que subsidiará a formulação de indicadores de planejamento no país asiático
Palco de conflitos sangrentos nas últimas décadas, o Afeganistão, república islâmica localizada na região central da Ásia, vem se reestruturando, apesar de não estar livre da violência. Sob coordenação da ONU, e a convite do Fundo das Nações Unidas para Atividades de População (UNFPA), um grupo de pesquisadores da área de demografia do Cedeplar/Face desenvolve projeto no país, que tem cerca de 34 milhões de habitantes.
Coordenado pela professora Laura Rodríguez Wong, o trabalho, que reúne dez professores e cinco estudantes de pós-graduação, visa orientar o órgão local de pesquisas e treinar recenseadores. “A ideia original era realizar um censo em todo o país, mas isso ainda é muito perigoso, e os recursos são limitados. De qualquer forma, a pesquisa abrange metade dos domicílios, o que é muito positivo”, comenta Laura Wong. Desde 2015, a equipe fez quatro viagens, em grupos de duas a quatro pessoas, para temporadas de três a quatro semanas. “Saímos do avião diretamente para um carro blindado, e dali para o acampamento da ONU. Recebemos a recomendação de não ir à cidade”, relata a professora.
Com experiência em projetos desenvolvidos em países como Angola, Moçambique e Guiné Equatorial, os pesquisadores da UFMG praticam a chamada demografia forense, que lança mão de evidências para extrair causas e consequências. “Obter respostas é um custo, por isso o questionário é desenhado para coletar dados incompletos. Há técnicas que possibilitam fazer deduções seguras com base em perguntas indiretas”, conta Laura Wong, que destaca a contribuição do professor emérito José Alberto Magno de Carvalho.
Migração
Com base nos dados disponíveis sobre aspectos como emprego e educação, o grupo preparou indicadores para o planejamento. Na primeira rodada de avaliações, o trabalho incluiu seis das 34 províncias; num segundo momento, outras sete. O mapeamento demográfico utiliza também o georreferenciamento: imagens produzidas por satélites revelam semelhanças entre territórios (quanto a construções, uso de energia elétrica, densidade populacional). Medidas governamentais similares são aplicadas a áreas que ainda não foram recenseadas.
O projeto produziu achados importantes, como os efeitos indiretos do movimento migratório: filhos de migrantes nascidos no Afeganistão não são, a rigor, migrantes, mas consequência dos deslocamentos dos genitores. Essas crianças representam quase um terço da população com menos de 15 anos em Cabul. Quando se trata de afegãos que retornam ao país, estes não são estrangeiros, mas chegam acompanhados do parceiro ou da parceira, filhos e outros parentes. Esse também é um efeito indireto da migração, desta vez, da migração de retorno. Outra constatação: se na maior parte dos países as mulheres vivem mais que os homens, no Afeganistão isso nem sempre acontece. “As mulheres são atingidas pela mortalidade materna e pela violência”, revela a coordenadora do projeto.
Casamento precoce
O casamento das meninas na adolescência ainda é prática comum. Comprometidas desde a infância, elas têm muitos filhos e no regime natural, como as ancestrais. As mulheres chegam a ter, em média, mais de seis ou sete filhos. As famílias ainda não respeitam recente lei que determina a idade mínima de 16 anos para o casamento. E isso gera informação deficiente nas pesquisas, porque não é admitido. “Um dos objetivos da ajuda internacional é manter as meninas afegãs na escola por mais tempo, para evitar uniões tão precoces. E, felizmente, há evidências de que essa iniciativa tem feito a prática diminuir”, diz Laura Wong.
O Afeganistão contraria também a regra de que mais educação e mais renda significam menos filhos. Lá, uma situação familiar um pouco mais favorável leva a mais casamentos e filhos. “O valor da família é muito alto, e o dinheiro é importante para arcar com os custos de conseguir uma esposa, formar uma família e gerar filhos”, diz Laura. Segundo ela, essa realidade implica um perigo, já que políticas sociais têm gerado melhorias, que possibilitam antecipar casamentos e, por consequência, a concepção de filhos. “Mais recursos propiciam mais saúde e, portanto, mais fertilidade. E repetidas gestações e partos põem as meninas em risco”, explica. “Dadas as sensibilidades culturais, é preciso orientar também os homens para o cuidado com a saúde da mulher.”
A pesquisadora salienta que os recenseadores devem estar sempre atentos e ser insistentes. Comumente, só os homens respondem aos questionários, e eles tendem a omitir dados sobre as mulheres. Podem, por exemplo, esconder a existência das mães, para “não expô-las”. Essa é uma das dificuldades impostas por características culturais que as técnicas dos demógrafos precisam driblar. “Por esse e outros motivos, o projeto é uma oportunidade fascinante, tanto para os professores veteranos quanto para os alunos”, enfatiza Laura Wong, que garante não ter enfrentado obstáculos, no Afeganistão, pelo fato de ser mulher.