O legado de Frei Vellozo

Fake news e a desordem informacional

O vídeo chama a atenção. Michelle Obama, ex-primeira dama dos Estados Unidos, veste uma blusa decotada, sorri e começa a se despir para a câmera. Parece real, mas não é; trata-se de exemplo de deep fake (falsificação profunda), produzida com auxílio de inteligência artificial. O leigo talvez demore a aceitar que aquelas imagens não são verdadeiras e não foram filmadas, mas sintetizadas digitalmente. Pode-se aplicar o rosto de alguém em cenas de sexo ou em qualquer situação comprometedora. O mesmo vale para a voz. Com amostras da fala de uma pessoa, um software a faz dizer qualquer coisa, com timbre, cadência e entonação próximos da perfeição. Ou seja, a divulgação de textos com conteúdo de algum modo mentiroso representa apenas o começo do fenômeno das fake news. O próximo passo parece ser a era das deep fake news. Será cada vez mais difícil separar a realidade da manipulação digital.

Os fatores por trás da desinformação são diversos. Vão da simples negligência (como a disseminação de boatos ou matérias jornalísticas mal-apuradas) à busca de vantagens políticas ou financeiras, passando pela tentativa de destruir reputações. Levando em conta essas gradações, o Conselho da Europa classificou as fake news em três categorias dentro de um quadro maior que chamou de desordem informacional, um conceito relevante por abranger diversas nuances da manipulação. Uma delas é a desinformação (disinformation), que consiste em notícias falsas deliberadamente criadas e espalhadas para prejudicar uma pessoa, um grupo social, uma organização ou um país. Outra é a notícia falsa propriamente dita (misinformation), compartilhada por uma pessoa desavisada que a princípio não tinha a intenção de prejudicar alguém. Por fim, o que chamou de mal-information (má informação), notícias que, embora tenham bases reais, são editadas e disseminadas com a finalidade de causar danos. 

Essas categorias poderiam descrever o fenômeno das notícias falsas em qualquer período da história, mas dois elementos fundamentais são específicos da atualidade: a velocidade com que as notícias falsas se espalham e sua capilaridade.  Plataformas como Facebook, Twitter, Google e YouTube, entre outras, têm, ao menos no Ocidente, alcance global instantâneo. A combinação dessa arquitetura com embates políticos nacionais, disputas geopolíticas globais e modelos de negócio baseados em publicidade comportamental criou as condições para que se aprofundasse o fenômeno da desordem informacional.

A batalha contra a desordem informacional será travada, sobretudo, em dois campos: ciência e tecnologia, de um lado, direito e regulação, de outro. A ciência vem tendo papel importante. Estudos publicados na revista Science comprovam, por exemplo, que as notícias falsas circulam muito mais depressa e de maneira mais abrangente do que as verdadeiras. Verifica-se também que a disseminação de notícias falsas está ligada  à polarização política da mensagem. 

Grupos que se interessam pela promoção da desordem informacional já perceberam as propriedades dos algoritmos nas plataformas. Também perceberam que é possível direcionar conteúdo para públicos específicos. A coleta de dados de usuários da internet possibilita determinar, com precisão, as suscetibilidades a vários tipos de mensagem, conforme mostra o recente caso do Facebook e da empresa Cambridge Analytica. Como esse tipo de iniciativa depende de informações pessoais de boa qualidade e em abundância, o controle efetivo desses dados por parte do usuário é fundamental no combate às fake news. Ao que tudo indica, nas recentes eleições da França, da Alemanha e da Itália, a desordem informacional foi quantitativamente menor e menos eficaz porque esses países contam com regras que dificultam a coleta de dados pessoais. Medidas restritivas nesse campo passarão a valer em toda a União Europeia a partir de maio, quando entrará em vigor o seu Regulamento Geral de Proteção de Dados. No Brasil, debate-se há anos a promulgação de uma Lei Geral sobre Proteção de Dados Pessoais, cujos projetos estão na Câmara e no Senado.  

O caminho que nos parece mais promissor para combater a desordem informacional é a abordagem multidimensional proposta em recente relatório de um grupo de especialistas designado pela Comissão Europeia. Essa proposta enfatiza as seguintes linhas de atuação:

i) obter maior transparência na divulgação de notícias on-line, inclusive em relação a como os dados pessoais são usados para direcionar informações aos leitores; 

ii) promover competências em educação para a mídia (media literacy), a fim de auxiliar usuários a navegar num mundo com superabundância de informação; 

iii) desenvolver instrumentos e ferramentas para que jornalistas, aliados a cidadãos, possam combater a desinformação; 

iv) impulsionar a diversidade e a sustentabilidade dos meios de comunicação;

v) estimular estudos continuados sobre o impacto da desordem informacional, tratando deles com análises científicas. 

O fenômeno das fake news, em síntese, é uma oportunidade de discutir o que deu errado com a internet. Nos anos 1990 e 2000, a rede era vista como força de democratização e melhoria das condições planetárias, mas, nesta década, começa a prevalecer a percepção dos aspectos distópicos. Sem perceber, estamos discutindo um novo equilíbrio para o ecossistema da informação. Para isso, é necessário um debate público constante e a participação ativa e consequente de todos os atores da sociedade.  A única forma de combater a pervasividade da desordem informacional será pela construção de um novo contrato social para a informação.

*Versão reduzida de artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo, Caderno Ilustríssima, em 8/4/2018

Virgilio Almeida - Professor associado ao Berkman Klein Center, na Universidade de Harvard. Aposentou-se em 2017 como professor titular do DCC/UFMG

Danilo Doneda -  Doutor em Direito Civil pela Uerj, é professor no Instituto de Direito Público (IDP) e especialista em privacidade e proteção de dados

Ronaldo Lemos - Advogado, diretor do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio (ITS Rio), professor da Universidade de Columbia e colunista da Folha de S. Paulo