Obra 'em obras'
Editora UFMG relança Passagens, livro que Walter Benjamin almejou ser uma arqueologia da modernidade cultural, baseada em suas origens na França do século 19
Em 2007, a Editora UFMG publicou uma tradução de Passagens, obra-prima em que Walter Benjamin (1892-1940) busca perscrutar a nova ordem de sociabilidade implementada pela burguesia na modernidade. Esgotada há tempos, a tradução do livro – que talvez só tenha ficado para a posteridade em razão de o escritor francês Georges Bataille (1897-1962) tê-lo guardado na Biblioteca Nacional da França, preservando-o dos horrores da Segunda Guerra Mundial, aos quais o próprio Benjamin não escapou – finalmente ganhou nova edição neste ano, desta vez organizada em caixa com três volumes, mais adequados para comportar o caráter monumental dos fragmentos do pensador alemão.
Para destacar a importância do livro, o BOLETIM convidou os professores Rodrigo Duarte, do Departamento de Filosofia, Heloísa Starling, do Departamento de História, e Georg Otte, da Faculdade de Letras, para escreverem breves depoimentos. Rodrigo Duarte apresenta panorama da penetração do pensamento de Benjamin em diferentes áreas do conhecimento, enquanto Georg Otte relembra o sentido do termo “passagens” e os conjuntos temáticos tratados nos volumes, como a moda, o flâneur, a prostituta, o jogador, a metrópole e o consumo.
Para Walter Benjamin, a relação entre o tempo e a história se dá por meio de correspondências, em uma espécie de constelação de estrelas soltas que, em algum momento (o presente), formam um desenho. Em seu depoimento, Heloísa Starling aborda a arte de escrever a história com imagens – desenvolvida pelo filósofo alemão –, o que torna Passagens uma das obras historiográficas mais significativas de todos os tempos.
Livro: Passagens (caixa com três volumes)
Autor: Walter Benjamin
Tradução do francês: Cleonice Paes Barreto Mourão
Tradução do alemão: Irene Aron
Editora UFMG
1.752 páginas / R$ 220
Leitor de vestígios
Georg Otte
Passagens, sem dúvida, é a principal obra de Walter Benjamin, apesar – ou por causa – de seu caráter inacabado. É uma obra “em obras”, como sugere também seu título do original alemão (Das Passagen-Werk), uma coleção gigantesca de fragmentos que tratam da cidade de Paris e de suas “passagens”, isto é, suas galerias comerciais. Nelas se moviam, ou melhor, passavam os moradores da capital francesa da primeira metade do século 19; no anonimato urbano, tudo era passageiro, assim como a “passante”, do poema de Charles Baudelaire (1821-1867) [leia no boxe abaixo]. Em Passagens, o leitor pode flanar pelos fragmentos. Em um deles, seu autor, que, na verdade, é um colecionador, não tem “nada a dizer. Somente a mostrar”. É como se cada um dos conjuntos temáticos dessa obra – sobre o próprio Baudelaire, sobre a moda, a iluminação das ruas etc. – fosse uma dessas galerias, e como se cada fragmento fosse uma vitrine convidando o leitor a dar uma olhada. Para Benjamin, ler e ver se confundem, e se ele compara o flâneur ao detetive, é porque, por trás da sua aparente indolência, esconde-se um observador atento que se dedicou à leitura dos vestígios da metrópole moderna.
Influência sobre Adorno
Rodrigo Duarte
Walter Benjamin é considerado, por muitos, um dos maiores críticos de literatura da história, e o seu trabalho como filósofo é amplamente reconhecido em todo o mundo e recebido em áreas como a história, as ciências sociais e o direito. A partir do fim da década de 1920, Benjamin estreitou os laços de amizade com [o filósofo e sociólogo alemão] Theodor Adorno (1903-1969), com quem teve também acirrados debates sobre o tema da “reprodutibilidade técnica da obra de arte”. Não obstante esse dissenso teórico, o conhecimento póstumo das teses de Benjamin sobre a história e o impacto que esse escrito causou em Adorno e no [filósofo e sociólogo alemão] Max Horkheimer (1895-1973), podem ser entendidos como uma forte inspiração para a redação conjunta, pelos dois, da Dialética do esclarecimento, especialmente no tocante à dialética entre civilização e barbárie. Passagens, sua obra inacabada, pode ser considerada o campo de forças que ordenou a produção intelectual dos seus 13 últimos anos de vida e pretendia ser uma definitiva arqueologia da modernidade cultural baseada em suas origens na Paris do século 19. Mesmo inacabadas, as Passagens são um elemento decisivo na influência de Benjamin no cenário cultural contemporâneo. No Brasil, a recepção da obra de Benjamin – inicialmente na área de letras, posteriormente na de filosofia – é uma das mais tradicionais entre os autores ligados à chamada “Escola de Frankfurt”, tendo-se iniciado na década de 1970. Atualmente, a influência de Benjamin no ambiente acadêmico brasileiro (e também fora dele, entre escritores e jornalistas, por exemplo) é ampla.
Retorno das possibilidades perdidas
Heloísa Starling
“Não tenho nada a dizer. Somente a mostrar”. O fragmento, que já ocupou um lugar de destaque na estética barroca e foi consagrado pelos primeiros românticos alemães como um gênero estilístico, constitui igualmente uma forma própria de escrita da história – e, como imaginou Walter Benjamin, no livro Passagens, essa é uma escrita de natureza visual e espacial. Mostrar possibilita intensificar o dado do passado que entra na narrativa, não para provocar uma expansão descritiva do enredo, mas com a pretensão de enunciar algo inteligível para a compreensão do acontecimento. Além disso, se é correto supor que do passado só nos restam fragmentos que nos vêm aos pedaços, mostrar cumpre mais uma função: a de produzir a visualização de uma escrita da história de leitura transversal e múltipla: não sequencial, não linear, incapaz de hierarquizar os fatos ocorridos. E, é claro, mostrar – ele dizia – significa revelar algo que, em determinado momento, as diferentes forças políticas no interior de uma sociedade colaboraram ou conspiraram para esconder. Afinal, os fatos não necessariamente coincidem com aquilo que o poder está disposto a assumir em público, e existem histórias que não se quer divulgar – ou se deseja esquecer. Além disso, a arte de escrever a história com imagens, um procedimento característico da teoria benjaminiana da cultura, fornece acesso a uma forma específica de narrativa capaz de reter do passado algo de perturbador: a repetição do que, propriamente falando, nunca aconteceu, o retorno das possibilidades perdidas. Essa repetição é virtualmente inseparável de um contexto político – toda imagem conta uma história e nos revela muito a respeito da maneira como os homens se veem na cena pública e organizam suas alternativas de convivência política.
A uma passante
Charles Baudelaire
A ensurdecedora rua em torno uivava.
Longa, esbelta, enlutada, uma dor majestosa,
Passava uma mulher, que com a mão faustosa,
O festão e a bainha erguia e balançava,
Ágil e nobre, com a perna escultural.
Eu sorvia, crispado como um beberrão,
Em seu olhar, céu lívido de furacão,
O dulçor que fascina e o prazer mortal.
Um raio... a noite cai! — Fugitiva beldade
Cujo olhar me causou um renascer dos dias,
Não te verei jamais, senão na eternidade?
Alhures, não aqui! Tarde! Talvez jamais!
Pois não sabes de mim, eu não sei aonde vais,
Ó tu que eu amaria, ó tu que o sabias!
(Tradução de Mário Laranjeira)
História dos vencidos
No fim da vida, Walter Benjamin escreveu 18 teses fragmentárias sobre o conceito de história. Na época, o filósofo tentava fugir para a Espanha, uma vez que a França estava sendo invadida pelas tropas nazistas. Nas teses, Benjamin critica os modelos historiográficos vigentes e se opõe a um ideal positivista de progresso, fundamentado na concepção linear e contínua do tempo. Como alemão judeu, Benjamin se interessava por pensar a história do ponto de vista dos vencidos, ou seja, a história não como algo determinado, mas como campo aberto às possibilidades, às inflexões, ao novo, ao imprevisto: em seu horizonte, estava a possibilidade de os vencidos construírem, no presente e por meio da ação, um futuro diferente daquele que se apresentava como pré-determinado pelas conjunturas.