Nova promessa de um velho remédio

Novo alvo para a aspirina

Pesquisa revela que o salicilato de sódio afeta via de sinalização ativada por proteínas malformadas, que pode estar associada a tumores

Presente na organela celular retículo endoplasmático, a proteína ATF6a é sensível à ação do salicilato de sódio (NaSal), um derivado da aspirina. A descoberta, relatada em tese defendida no ICB, indica novo alvo terapêutico para um dos analgésicos, antitérmicos e anti-inflamatórios mais utilizados no mundo e abre caminho para novas investigações do seu uso sobre a resposta celular a proteínas mal dobradas, fenômeno que pode estar associado ao desenvolvimento de tumores.

“Alguns estudos sugerem que a ATF6a está relacionada ao desenvolvimento e à progressão de alguns tipos de tumores. Por isso, é promissora a constatação de que um medicamento amplamente consumido e estudado tem ação sobre ela”, explica a autora do trabalho, Fernanda Lins Brandão Mügge. As proteínas mal dobradas causam o chamado estresse do retículo endoplasmático, em situações como falta de oxigênio ou de nutrientes, além de infecções virais e doenças genéticas. A má-formação resulta na ativação de três proteínas – Perk, IRE1 e ATF6a. Nos testes em laboratório, o salicilato de sódio inibiu a ativação e função de ATF6a, impedindo sua atuação no interior das células.

Segundo a pesquisadora, o estabelecimento de nova conexão entre os efeitos dos salicilatos e uma via da resposta a proteínas mal dobradas contribui para o entendimento dos efeitos biológicos dessa classe de fármacos e pode auxiliar na compreensão do mecanismo pelo qual o tratamento prolongado com aspirina resulta na prevenção do desenvolvimento de tumores em diferentes tecidos. “É um achado importantíssimo”, comemora o orientador do trabalho, professor Aristóbolo Mendes da Silva, do ICB, lembrando que há uma infinidade de estudos à procura de alvos para diversas moléculas. 

“Digamos que nos próximos anos haja a confirmação de que a ATF6a esteja associada ao mau prognóstico de câncer. O fato de sabermos que essa proteína é inibida pela aspirina traz muitas vantagens. Em primeiro lugar, seria possível desenvolver protocolo terapêutico em associação com outros fármacos. Além disso, o acesso ao tratamento seria em princípio facilitado, devido ao baixo custo”, afirmou o orientador. 

Expressão reduzida
“Como o papel da proteína nas respostas celulares induzidas pelos salicilatos não havia sido investigado, nosso objetivo principal foi caracterizar a expressão e ativação de ATF6a em células tratadas com NaSal”, comenta Fernanda. Ela demonstrou que a inibição da atividade transcricional da molécula ATF6a reduz a expressão de diversos genes-alvo de ATF6a responsivos ao estresse do retículo endoplasmático. Fernanda, que já havia estudado os salicilatos em seu mestrado, também tratou do tema em sua tese de doutorado, e grande parte dos resultados encontra-se no artigo Aspirin metabolite sodium salicylate selectively inhibits transcriptional activity of ATF6a and downstream target genes, publicado em agosto de 2017 na revista Scientific Reports, da editora Nature.

A pesquisadora explica que o retículo endoplasmático é uma organela celular responsável pela síntese e por modificações de muitas proteínas, tanto as que permanecem nas células como outras que são secretadas. Perturbações da homeostase dessa organela, ocasionadas pelo acúmulo de proteínas mal dobradas, dão início à resposta ao estresse no retículo endoplasmático. “A ativação dessa resposta leva a célula a interromper a tradução de novas proteínas e a iniciar um programa de ativação transcricional de genes que aumentará a capacidade da célula de dobrar corretamente ou degradar as proteínas mal dobradas”, explica. 

O tratamento com NaSal inibiu a ativação de ATF6a induzida por vários agentes indutores de estresse do retículo endoplasmático, em diferentes tipos celulares. Também demonstrou que o salicilato de sódio é capaz de restringir a ativação de ATF6a e inibir a expressão de um conjunto específico de genes responsivos ao estresse do retículo.

Salgueiro
Presente em frutas e legumes, o ácido salicílico foi descoberto no século 18, quando o clérigo inglês Edward Stone fazia infusão da casca de salgueiro para tratar pacientes com dores e inflamações. Extraído o princípio ativo, o laboratório Bayer, da Alemanha, sintetizou essa molécula e passou a comercializar o ácido acetilsalicílico.

Recentemente, outro grupo de pesquisa propôs um mecanismo para inibir a ativação da molécula ATF6a, o que evidencia a importância desse alvo. Contudo, como lembra Fernanda Lins Brandão Mügge, o desenvolvimento de novo caminho farmacológico é ­demorado: “São no mínimo dez anos de testes clínicos para saber se realmente pode ser utilizado em humanos. Já o ácido acetilsalicílico foi sintetizado pela primeira vez há 120 anos e é amplamente utilizado, no mundo inteiro, com conhecidos efeitos no organismo.” 

Aristóbolo e Fernanda: alternativa para inibir a ativação da ATF6a
Aristóbolo e Fernanda: alternativa para inibir a ativação da ATF6a Foca Lisboa/UFMG

Tese: Efeitos do fármaco anti-inflamatório salicilato de sódio sobre o ramo da via de proteínas mal dobradas mediada pelo fator de transcrição ATF6a
Autora: Fernanda Lins Brandão Mügge
Defesa: março de 2018, no Programa de Pós-graduação em Biologia Celular
Orientador: Aristóbolo Mendes da Silva, do Departamento de Morfologia do ICB, pesquisador PQ-2 do CNPq

Ana Rita Araújo