Tradição contestatória
Marcos Fabrício Lopes da Silva*
Transcorridos mais de 500 anos da anexação do Brasil ao Velho Mundo e de vários acontecimentos políticos importantes, a proclamação da República situa-se entre as mais relevantes mudanças ocorridas no país. O movimento republicano desejava modificar política e economicamente o Brasil a partir do final do século 19, mas se transformou em uma utopia pela incapacidade, nas primeiras décadas, de romper com estruturas que continuavam a privilegiar alguns setores sociais e econômicos como o primário. Não obstante, desenhava-se um quadro urbano marcado pela recente industrialização e por seus efeitos.
A República Brasileira, proclamada em 15 de novembro de 1889, assim como a Independência política de 7 de setembro de 1822, fez-se distante do universo social mais humilde. Parafraseando Aristides Lobo, a maioria da população brasileira assistiu à mudança do sistema de governo de forma “bestializada”, uma vez que a discussão e a participação nos debates ficaram restritas aos cafeicultores, militares e representantes da Igreja Católica, que desejavam a mudança por estarem descontentes com a manutenção da Monarquia. É mister lembrar que o Brasil foi monárquico de 1822 a 1889. Nesse período, a sociedade brasileira forjou vários movimentos de oposição ao Império, como as revoltas Sabinada (1837-1838), Balaiada (1838-1841), Cabanagem (1835-1840) e Farroupilha (1835-1845). Movimentos de cunho político e econômico, que contaram com a participação popular.
Convém lembrar que, durante o longo período colonial brasileiro (1500-1822), apesar da opressão exercida pelos ditames metropolitanos e devido às desigualdades sociais oriundas do sistema estamental em vigor, a sociedade brasileira encontrou expressões em movimentos sociais como a formação dos quilombos e as reações de tribos indígenas. Esses movimentos sociais contribuem para desmentir ideias que apontam a passividade da sociedade brasileira e contribuem para reforçar a visão das posturas que levam à observação e não à participação no processo histórico. Em Os sertões (1902), Euclides da Cunha ressalta o poder transformador de um dos mais significativos movimentos sociais do país – Canudos (1896-1897). Afirma o escritor sobre o pré-socialismo dos seguidores de Antônio Conselheiro: “a propriedade tornou-se-lhes uma forma exagerada do coletivismo tribal dos beduínos: a apropriação pessoal apenas de objetos móveis e das casas, comunidade absoluta da terra, das pastagens, dos rebanhos e dos escassos produtos das culturas, cujos donos recebiam exígua quota-parte, revertendo o resto para a ‘companhia’ [isto é, para a comunidade]”.
Dialogando com a rebeldia socrática, acomodados bebem sukita; inconformados, cicuta: “‘Recebe teu filho, minha Mãe Natureza. Ele não vai ser sepultado, vai ser plantado na tua sombra, como ele queria. Para que dele nasçam novos guerreiros’. Basta perguntar a qualquer xukuru se seu cacique foi enterrado e ele responderá: ‘Não foi; foi plantado no chão’”, destaca Nathalia Viana, em Plantados no chão: assassinatos políticos no Brasil hoje (2007). Diante da exclusão de parcelas significativas da população brasileira de direitos fundamentais (o que acontece desde a colonização e atinge preferencialmente alguns grupos sociais, como os negros e índios), da diversidade de problemas e questões que se apresentam como desafios para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária, organizaram-se e continuam organizando-se vários movimentos sociais. Desemprego, violência, saúde, poluição, educação, moradia, meio ambiente, desigualdade social, políticas públicas e corrupção estão entre os problemas mais graves que afetam a vida social dos brasileiros. Historicamente, os movimentos sociais no Brasil são marcados por lutas em defesa da vida e dos direitos humanos pautados em princípios éticos e de justiça.
Nos anos 1990, de norte a sul, o refrão era o mesmo em todas as vielas: “Eu só quero é ser feliz! Andar tranquilamente na favela onde eu nasci! E poder me orgulhar e ter a consciência que o pobre tem o seu lugar!” (Cidinho & Doca, 1994). O funk carioca nascido na Cidade de Deus se espalhava por todas as quebradas, ritmando a insatisfação diante da antiga estrutura social e política que nega à grande maioria dos brasileiros os direitos a uma vida justa. No Rap da felicidade, se diz: “Nunca vi cartão-postal que se destaque uma favela”. Bem antes disso, na década de 1960, quando o país estava prestes a ser governado pelas forças armadas – as fardas detentoras da prerrogativa da violência do Estado –, o protesto vindo da favela já corria mundo, por meio das letras transgressoras de Carolina Maria de Jesus, escritora que rompeu com os pressupostos de raça, gênero e classe que sustentam o sistema literário brasileiro.
Entre a batida do funk que brada “Moro na favela e sou muito desrespeitado [...] enquanto os ricos moram numa casa grande e bela, o pobre é humilhado esculachado na favela” e as palavras de Carolina Maria de Jesus, a mesma reserva moral de uma brasilidade digna, consciente, politizada e exemplar: “A dona Fausta foi averiguar o que havia. Encontrou-me com o seio recheado de mangas. Dirigiu-me um olhar que me amedrontou. Percebi que ela era avarenta./Repreendeu-me!/– Então é você quem rouba as minhas frutas. Negrinha vagabunda. Negro não presta./Respondi:/– Os brancos também são ladrões porque roubaram os negros da África./Ela olhou-me com nojo./ – Imagina só se eu ia até a África para trazer vocês... Eu não gosto de macacos./Eu pensava que a África era a mãe dos pretos. Coitadinha da África que, chegando em casa, não encontrou os seus filhos. Deve ter chorado muito” (Diário de Bitita, 1986).
* Professor da Faculdade JK, no Distrito Federal. Jornalista, formado pelo UniCEUB. Poeta. Doutor e mestre em Estudos Literários pela UFMG. Graduando em Letras pela UnB