Novas luzes sobre o fígado

Aquela casinha no campo

Tese analisa produção musical dos anos 1970 que uniu romantismo e contracultura para pregar uma vida mais livre, em meio à natureza

Um relógio velho / Me espera parado / Desde o começo de abril / Tem uma menina / Que eu encontrei na estrada / Dizendo que volta comigo / Pra descansar um pouco da vida / Que a gente escolheu

Os versos são da Segunda canção da estrada, composição de Sá e Guarabyra, dois dos nomes mais simbólicos de uma vertente do rock brasileiro que, nos anos 1970, fazia uma crítica ao consumismo e ao isolamento social e cantava as delícias da vida na estrada e no campo. Essa produção é abordada por Victor Henrique Resende em tese defendida no mês passado na Escola de Música.

“O romantismo e a contracultura estão muito próximos no universo dos anos 70. No meu trabalho, tento mostrar como a ideia de retorno ao campo e a denúncia das atrocidades da vida moderna contra a natureza passam pela música e principalmente pelo rock brasileiro da época”, afirma Victor Resende, que é professor do Centro Universitário de Lavras (Unilavras).

Ele relata que, no tempo do mestrado, em que concentrou sua pesquisa na obra do trio Sá, Rodrix e Guarabyra, criou o conceito de “romantismo contracultural” para referir-se à mistura de uma visão bucólica e do apreço pela vida simples com os valores da contracultura, que no exterior foram representados por movimentos como o hippie norte-americano e o conhecido Maio de 1968, na França. “O universo da contracultura é muito rico e extrapola o estilo de vida hippie, as drogas e o amor livre. Uma parcela do rock brasileiro se apropriou da crítica a atitudes repressivas e da ideia de compartilhamento e comunidade, entre outros aspectos.”

No Brasil, segundo o pesquisador, essa maneira de ver o mundo apareceu com força nas letras, nas sonoridades, nos discos e nos shows de grupos como Sá, Rodrix e ­Guarabyra, Casa das Máquinas, O Terço e Recordando o Vale das Maçãs. “Muitos desses artistas concebiam os seus discos em fazendas ou em casas em pequenas cidades e depois voltavam aos centros urbanos para fazer as gravações”, exemplifica Victor Resende.

Fragmento da capa do LP Terra, de Sá, Rodrix & Guarabyra (concepção gráfica de Waltercio Caldas)
Fragmento da capa do LP Terra, de Sá, Rodrix & Guarabyra (concepção gráfica de Waltercio Caldas)

Iconografia
A investigação articulou a história e a ­música como campos de conhecimento. Uma das referências do trabalho é o conceito de fato musical, elaborado pelo semiólogo Jean Molino, da Universidade de Lausanne (Suíça). “A música é uma construção cultural, não basta analisar o material sonoro e poético”, afirma Victor Resende.

O leitor da tese encontra, entre diversos outros elementos, transcrições de trechos relevantes das composições e análise de capas de discos. “A iconografia foi muito importante nesse período. As capas revelam as performances dos músicos, e estão lá as noções de estrada, campo e cidade que conduziam a expressão desses artistas”, diz Victor Resende, que entrevistou músicos e críticos, consultou jornais da época, assistiu a fragmentos de programas da extinta TV Tupi e às primeiras experiências do que se conheceu mais tarde por videoclipe.

As letras dessa vertente do rock falam de um campo paradisíaco e idílico e da fuga da cidade grande e da modernidade, em busca de paz, reflexão e liberdade, perto da natureza. “Outros temas aparecem relacionados, como a memória da infância, que para os românticos tem tudo a ver com bucolismo e com a pureza da vida no campo”, diz o pesquisador, ressaltando que as músicas não têm quase nada de crítica à ditadura. “Os artistas ocupam o que [o teórico da Universidade de Harvard] Homi Bhabha chama de entrelugar. Eles tinham noção do que acontecia no país, mas não tinham um projeto de engajamento. Não atacavam os governos militares de forma direta nem metafórica. Havia no máximo referências sutis. No final das contas, queriam apenas fazer seu som”, conclui Resende.

(Com entrevista veiculada no programa Expresso 104,5, da Rádio UFMG Educativa, em 28/08/2018)

Tese: Rock brasileiro e romantismo contracultural no Brasil: campo, cidade, música e modernidade
Autor: Victor Henrique Resende
Orientadora: Ana Cláudia Assis
Defesa: agosto de 2018, no Programa de Pós-graduação em Música

Itamar Rigueira Jr.