Novas luzes sobre o fígado

Elogio do imaginário

A noção de imaginário é ingrata e complexa: o termo pode ser conotado negativamente em relação às noções de símbolo e de utopia, que normalmente são encaradas mais positivamente na ordem da construção social, ou ser associado às dimensões mais fantasistas, lúdicas, oníricas e poéticas. Tem-se constatado, no último século, uma ressurgência dessa última noção de imaginário por meio, por exemplo, da valorização dos contos e das pequenas narrativas (as chamadas storytelling) na vida social e política contemporânea. Nelas, o imaginário está presente no desenvolvimento das tecnologias da comunicação, das biotecnologias que parecem reativar os mitos de Frankenstein, do Drácula, de Fausto, da “juventude eterna” e de toda a parafernália ligada à mitologia do Cyborg e da dita realidade virtual. 

Nesse contexto interessa, desde já, que não consideremos o imaginário como mero conjunto de representações fictícias, falsas ou ilusórias, pois ele é mais do que isso: é também uma linguagem simbólica universal por meio da qual conferimos forma às emoções, às imagens e às ideias. O imaginário é um tecido complexo de afetos e de representações que possibilita, por sua vez, exprimir significações e produção de sentido, correndo mesmo o risco de ser objeto igualmente de erros e de ilusões à semelhança, aliás, da razão, lembrando um dos gravados de Goya que pertence à série dos seus Caprichos (nº 43, de 1799): El sueño de la razón produce monstruos (O sonho da razão produz monstros).

Ainda que à primeira vista o imaginário possa estar associado à categoria do irracional, o certo é que ele também representa a unidade e a coerência das produções simbólicas do espírito, como Claude Lévi-Strauss e Gilbert Durand pretenderam ilustrar desde os anos 1960. Esses autores atribuíram ao imaginário toda uma racionalidade, ainda que complexa e baseada numa lógica diferente da aristotélica, que possibilitou aos diferentes saberes que se apropriam dele assumirem-se como fiáveis no campo interdisciplinar. 

O imaginário é uma espécie de “bacia semântica” responsável por organizar dinamicamente as obras da imaginação que contribuem para enriquecer quer a representação do mundo, quer a elaboração da identidade do eu. O imaginário lida com o sentido figurado que lhe advém da faculdade da imaginação criadora que, por sua vez, estimula o pensar. Convém não esquecer, conforme Gilbert Durand, um dos pais dos Estudos do Imaginário, que o imaginário representa talvez uma primeira estrutura psíquica e cognitiva por meio da qual percebemos, recordamos, antecipamos o futuro, relacionamos com os outros e tentamos conhecer a origem e o fim de todas as coisas para exorcizar a morte pelo aumento de sentido.

Jean-Jacques Wunenburger salienta que o valor do imaginário não reside unicamente nas suas produções, mas também na utilização que delas se faz, e a sua utilização é passível de originar uma crise simbólica de grandeza variável consoante os casos. Por isso mesmo, o imaginário carece de uma pedagogia, de uma ética capaz de destrinçar o trigo (o pensamento figurativo que conta, quer dizer, a sabedoria das imagens) do joio (as imagens falaciosas, alienantes, fantasmáticas etc.). 

O imaginário carece, pois, de uma pedagogia a fim de não cair nas suas patologias que recebem o nome de hipertrofia (inflação de imagens descontroladas) e de hipotrofia (deflação de imagens pregnantes simbolicamente). Quando o ambiente sociocultural, científico e psicológico não cria condições para que as imagens que o habitam exprimam, de modo adequado, o imaginário, escreve Jean-Jacques Wunenburger, tanto pode sofrer uma necrose, de modo a afetar e a atrofiar o psiquismo humano, quanto tornar-se violento e selvagem e explodir sob forma de condutas e de aspirações irracionais (veja o caso das ideologias políticas). Por isso, os estudiosos do imaginário devem velar para que ele dialogue, quer com a cultura científica (logos-conceitos), quer com a cultura poética (mythos-afetos). A esse respeito importa saber que “a educação artística, a cultura religiosa, por exemplo, quando irrigadas pelos ritos e mitos, ajudam o sujeito a manter um poder imaginante que deve incessantemente contrabalançar as normas e as exigências de uma cultura abstrata e digital”, nas palavras de Jean-Jacques Wunenburger. Assim, a criação de uma pedagogia do imaginário é crucial para credibilizá-lo como um dos polos incontornáveis do espírito humano, de modo que o sujeito de hoje saiba distinguir as imagens com alma dos falsos ídolos.

Face ao exposto, importará ressaltar que, por detrás da noção de imaginário, encontra-se o conceito de imaginação, o qual, por sua vez, engloba as dimensões produtora e reprodutora e não pode ser pensado sem os conteúdos que ele próprio gera. Daí que seja possível falar-se de vários tipos ou modalidades de imaginário: social (ideologia-utopia), científico, mítico, literário, educacional, político, entre outros. No nosso caso, visto que trabalhamos predominantemente com imagens que provêm de textos educacionais, falamos do imaginário educacional que, como imaginário híbrido, é tanto devedor do imaginário social (ideologia-utopia) quanto do imaginário mítico (mitos-símbolos). Por outras palavras, se a presença massiva de metáforas nos textos e discursos educativos é uma constante, e se elas, como salienta Paul Ricoeur, nos abrem a porta e a janela do simbólico, então as figuras, mediadas pelas ideias pedagógicas e pelos “ditos educativos”, como nos diz Daniel Hameline, que animam o imaginário educacional, tornar-se-ão mais inteligíveis. 


Alberto Filipe Araújo. Professor catedrático do Instituto de Educação da Universidade do Minho, em Braga, Portugal. O autor estará na UFMG, de 10 a 14 de setembro, para debater questões do imaginário e suas interfaces interdisciplinares como convidado do Gabinete de Estudos da Informação e do Imaginário (GEDII), grupo de pesquisa vinculado ao Programa de Pós-graduação em Ciência da Informação