Envelhecer é viver

Memória em meio às chamas

No princípio era o verde, e o verde estava com o humano, e o humano estava no verde. O humano estava no princípio com o verde. A vida e a morte estavam no verde, e o humano lutava para que a morte não prevalecesse sobre a vida.

E, no esplendor do verde das montanhas e matas, no frescor das águas cristalinas, Luzia apanhava frutos, caçava, alimentava-se e dormia, juntamente com outros caçadores-coletores. Ali viveu e morreu, ainda jovem, tombando seu corpo onde, milhares de anos depois, seria encontrada por arqueólogos e levada ao Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), para ser estudada e admirada como o esqueleto humano mais antigo já descoberto nas Américas.

Além do inestimável valor arqueológico, o fóssil de Luzia e sua trajetória trazem em si simbolismos aos quais não devemos passar incólumes. “Se calhar, tudo é símbolos”,escreveu Fernando Pessoa. Os simbolismos importam, especialmente nos estranhos dias que correm. Atentemos, pois, às mortes de Luzia.

A primeira delas se deu em uma natureza pródiga, mas plena de perigos. E talvez tenha sido a um desses perigos – uma fera faminta, uma doença fulminante, um acidente em um penhasco – que Luzia tenha sucumbido. Mas o perigo, desde priscas eras, nem sempre vem nas asas da enfermidade fortuita nem do animal selvagem: pode vir dos nossos semelhantes.

Semelhantes, mas distintos, como no romance Os herdeiros, do escritor inglês William Golding (1911-1993). Ali, também no alvorecer da espécie humana e em meio ao esplendor luxuriante do verde, um grupo
de caçadores-coletores apanhava frutos, caçava, dormia e morria de acidentes evitáveis e de enfermidades casuais. Essa era a vida de Lok, Tanakil, Fa, Liku e Tuami, personagens do livro. Até que uma nova horda humana surge, violenta e brutal, matando, um a um, os membros do grupo de Lok. Talvez tenha também matado Luzia, em uma sórdida emboscada na floresta.

O poder dizimador da insensatez e da violência inerentes à natureza humana, incrustado no âmago do humano, perpassa a obra do Nobel de Literatura de 1983. Como em O senhor das moscas (1954), Golding,
em Os herdeiros (1955), expõe cruamente a instintiva pulsão de morte que nos domina.
Ele sabia do que escrevia: ele se confrontou diretamente com o ódio assassino, em todo seu furor violento e colérico, ao combater o totalitarismo na Segunda Guerra Mundial, quando lutou pela Marinha britânica. Golding participou de algumas das mais épicas batalhas da Segunda Guerra, como a caça
ao encouraçado germânico Bismarck e o desembarque do Dia D, na Normandia. Ele viu, olhos nos olhos, o ímpeto morticida. Lok e seu grupo têm de fazer frente a essa violência letal, como talvez Luzia e seus companheiros – que aqui chamaremos de Aline, Ana, Dolores, Hugo e Luciano – também o fizeram, tentando salvaguardar a joia do humano em meio à intolerância, à ferocidade, à
tortura. O fóssil de Luzia pode ser o fóssil das pérolas humanas que ali foram derrotadas: a liberdade, o altruísmo, o respeito, a beleza da diversidade da experiência humana.

A segunda morte de Luzia, nós sabemos, foi provocada pelas chamas. O incêndio do Museu Nacional é o fogo do descaso e da bestialidade, é o fogo que consome o humano. A tragédia flamejante do Museu Nacio-
nal foi alimentada por uma malta corrupta e obtusa, que atacou o Museu com a mais vil das armas, o vazio cáustico da desmemória, como diz o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, da UFRJ: “O Brasil é um país onde governar é criar desertos. Desertos naturais, no espaço, com a devastação do cerrado, da
Amazônia. Destrói-se a natureza e agora está se destruindo a cultura, criando-se desertos no tempo”. O fogo que arrasa o verde é o mesmo que aniquila a memória. O patrimônio da memória humana, dizimado pelas labaredas que arrasaram um magnífico prédio histórico da UFRJ, é o emblema do ataque a um dos papéis precípuos da universidade pública brasileira: ao ser espaço de conhecimento e de ciência crítica, a universidade é o templo da preservação da memória do que nos faz humanos, do que nos faz gente.

Há, no entanto, outro simbolismo na trajetória de Luzia. Depois da sua segunda morte, seu fóssil foi reencontrado e resgatado em meio aos escombros e às cinzas do Museu Nacional. A memória do humano resistiu ao fogo da barbárie, do aniquilamento e da desmemória. Esse é o maior e mais inspirador dos símbolos.

“Agora é como o tempo em que o fogo saiu voando e devorando as árvores”, constata Lok, assustado. Sim, um novo fogo virá, voando, trazendo novos e velhos medos, ameaçando Loks e Luzias, chamejando a universidade, calcinando o verde que existe desde o princípio dos tempos. Virá insuflado pelo novo-velho combustível integralista, feito do amálgama peçonhento de fundamentalismo religioso, patriotismo vulgar, moralismo de ocasião, revisionismo histórico, mitomania e desprezo iracundo contra tudo que é diferente, contra quem é mais fraco. Abatidos, mas não vencidos; queimados, mas não aniquilados; combalidos, mas não derrotados, preservaremos a memória que precisa ser preservada. Que venha o fogo e suas chamas: aqui nós estamos, aqui permaneceremos.

Leonardo Cruz de Souza / Médico neurologista, doutor em Neurociências pela Université Paris 6. Professor adjunto do Departamento de Clínica Médica da Faculdade de Medicina