Inclusão e alto rendimento

O paradoxo da inflamação

Artigo de pesquisadores da UFMG demonstra que uso indevido de anti-inflamatórios pode retardar reparação de tecidos

Experimentos com camundongos demonstram que o uso de anti-inflamatórios deve ser controlado, considerando não apenas a quantidade e o tipo de droga, mas, sobretudo, o estágio em que se encontra a doença. “O mesmo medicamento que pode evitar dores, mal-estar e perda de função de órgão, se usado continuamente ou no auge do processo inflamatório, pode atrasar a reparação tecidual”, alerta o professor Gustavo Menezes, do Departamento de Morfologia do Instituto de Ciências Biológicas (ICB).

Em artigo publicado na revista Cells, em dezembro, o pesquisador alerta para a necessidade de entender a resposta inflamatória do organismo, que tem papel paradoxal – com momentos de destruição e outros de reparação de tecidos. O trabalho revela que há atraso na recuperação do órgão afetado quando a intervenção medicamentosa é feita em momento indevido.

Segundo Menezes, anti-inflamatórios são, na maioria das vezes, medicamentos sintomáticos: “Se os sintomas cessaram, não faz qualquer sentido manter o uso. Muitos pacientes continuam a tomar o medicamento prescrito mesmo sem dor ou inchaço, só porque já estão tomando ou por precaução, mas isso pode acarretar malefícios”, explica o pesquisador, lembrando que o estudo, realizado com modelos de lesão hepática, pode ser válido para outros órgãos, pois as células do sistema imunológico são muito parecidas nos diversos tecidos e órgãos do corpo.

Dupla face
Tida muitas vezes como mal a ser combatido a qualquer custo, a resposta inflamatória pode ter uma parte lesiva e desconfortável inicialmente, mas é necessária ao organismo para que ocorra o reparo tecidual. “É como uma cidade atingida por um míssil: para reconstruir, é preciso demolir as construções danificadas e limpar o terreno. Os neutrófilos, células de defesa que chegam rapidamente ao tecido inflamado, precisam acabar de digerir os tecidos mortos, para que o órgão possa se reconstituir. Assim, bloquear sua ação completamente e por longos períodos impede que o tecido se repare corretamente”, compara Menezes.

Células do sistema imunológico coradas em animais vivos. Em verde, os neutrófilos acumulam-se na região da lesão; em vermelho, macrófagos; em azul, a autofluorescência do parênquima hepático (estrutura física geral).
Células do sistema imunológico coradas em animais vivos. Em verde, os neutrófilos acumulam-se na região da lesão; em vermelho, macrófagos; em azul, a autofluorescência do parênquima hepático (estrutura física geral)Center for Gastrointestinal Biology | UFMG

Quando um médico receita um anti-inflamatório, o uso deve ser feito somente enquanto o paciente sentir dor. “Se houver dor por muito tempo, é necessário voltar ao médico, já que o processo não foi resolvido. Além disso, fazer uso por vários dias, sem dor, não traz benefícios e tem potencial malefício. É isso que o nosso trabalho mostra experimentalmente”, diz o professor.

Nos testes com animais, foi utilizado modelo de lesão hepática por paracetamol, em uma disfunção momentânea na qual ocorreria autorremissão. “Menos sintomas surgem quando a resposta é bloqueada antes. Mas, se não bloquearmos por longos períodos, a disfunção se resolve muito mais rápido, em pelo menos duas vezes menos tempo”, descreve. Menezes explica que é necessário saber em que casos o anti-inflamatório deve ou não ser usado. E enfatiza que, exceto em doenças nas quais a causa principal do problema é o próprio processo inflamatório – como artrite e fibrose pulmonar –, os anti-inflamatórios são medicamentos que inerentemente tratam sintomas.

Além de investigar como o processo de resposta inflamatória pode ser multifacetado, o artigo mostra que a intervenção farmacológica não pode ser feita a qualquer momento. “Deve-se achar o ponto exato. Às vezes, em pacientes que já estão inflamados, bloquear sintomas pode não ser tão benéfico”, diz. 

Assim, em termos biológicos, o trabalho esclarece que a resposta inflamatória não tem apenas a face ruim e mostra que as intervenções que bloqueiam a inflamação são momento-dependentes.

Há casos, contudo, em que ocorre resposta exacerbada do organismo. “Temos vários trabalhos publicados nessa linha e uma patente de dois medicamentos que podem reduzir a resposta inflamatória, mas isso não significa que a inflamação em si seja ruim, o que não faria sentido do ponto de vista evolutivo”, alerta. “É provavelmente por saber inflamar que os seres humanos ainda estão na Terra. É uma resposta à agressão que foi mantida por quase todos os seres vivos, desde plantas, até mamíferos superiores”, enfatiza.

Gustavo Menezes comenta que a inflamação está presente em processos normais do organismo, como a ovulação e a filtração da urina. Por isso, o uso abusivo de anti-inflamatórios afeta a fertilidade, a formação da urina, o sistema nervoso central e o calibre dos vasos do coração. 

“Medicamentos são substâncias capazes de mudar comportamentos no organismo. A decisão de usá-los deve ser sempre resultado de uma equação entre o quanto de malefício e de benefício vão trazer”, pondera o Gustavo Menezes.

A pesquisa que gerou o artigo foi realizada pela equipe do Center for Gastrointestinal Biology, coordenado por Gustavo Menezes, e contou com a colaboração do professor Mauro Martins Teixeira, também da UFMG, e de pesquisadores da Universidade Federal de Viçosa (UFV), da Universidade de Calgary (Canadá) e do Harvard Medical School (EUA).

[Matéria publicada no Portal UFMG, em 17/1/2019]

Artigo: Paradoxical Role of Matrix Metalloproteinases in Liver Injury and Regeneration after Sterile Acute Hepatic Failure
Publicação: Revista Cells

Ana Rita Araújo