E o pó virou produto

Lobato e o 'choque das raças'

“A nacionalidade brasileira só embranquecerá à custa de muito sabão de coco ariano!”. Assim, decretava Renato Kehl, um dos principais eugenistas brasileiros do século passado. O conceito por trás da eugenia está muito bem traduzido em infinitivos como aperfeiçoar, evoluir, superar, embelezar, fortalecer. De acordo com a historiadora Pietra Diwan (2007), os ideais eugênicos, nascidos na segunda metade do século 19 com o inglês Francis Galton, remontam à Antiguidade, época em que, motivados pela busca incessante do ideal grego de beleza e força, os eugenistas selecionavam os traços físicos e o biótipo de quem poderia fazer parte de uma sociedade evoluída.

No Brasil, Kehl foi o eugenista que mais chamou atenção devido aos seus escritos complexos e ambivalentes. Nenhum outro brasileiro fora tão incisivo no desejo de tornar o Brasil cheio de “gente sã, física e moralmente”. Mas, antes dele, esses ideais já estavam postos no país tupiniquim. Motivados pelo racismo e pela noção vigente de branqueamento populacional, diversos médicos, intelectuais europeus, cientistas, antropólogos e juristas viam na eugenia uma forma de melhorar racialmente o Brasil desde a vinda da família real portuguesa, em 1808. Para eles, a suposta promiscuidade racial na qual o país estava inserido, além de enfear a população, levava a nação à degeneração e ao atraso, pois o sangue africano e indígena impedia o progresso reservado às sociedades puras. A premissa era de que a mestiçagem inferiorizava o ser humano, pois ao combinar diversas ancestralidades, o gene impuro sempre levava vantagem em relação ao gene puro.

Desde figuras históricas pouco conhecidas até personagens massificados, muitos foram os que creram na impossibilidade do progresso brasileiro dada a sua composição racial. Uma das figuras alinhadas ao movimento eugênico é Monteiro Lobato.

José Bento Renato Monteiro Lobato, nascido no estado de São Paulo em 1882, foi um dos mais importantes escritores brasileiros. Suas obras para o público infantil, como O sítio do picapau amarelo, são muito difundidas ainda hoje. 

O personagem Jeca Tatu é demonstração vívida da preocupação de Lobato com a questão sanitarista do Brasil. Quando o conto Urupês foi publicado, em 1914, percebeu-se nitidamente como Lobato enxergava o sertanejo. Um ser “degradante, seminômade e inadaptável à civilização”, características atribuídas a Jeca Tatu em um primeiro momento. Segundo Pedro Moraes (1997), na primeira fase do Jeca, o viés evolucionista, racista e eugênico de Lobato era claro. Jeca Tatu simbolizava o sertanejo comum doente, preguiçoso, ignorante e um “funesto parasita”. 

A causa de tamanha degradação, para Lobato, estava na mistura racial. Em sua visão, o negro era inferior ao branco, e a mistura dos dois resultava em seres fracos com características iguais às do Jeca Tatu. Em 10 de abril de 1928, Lobato escreveu uma carta ao médico baiano Arthur Neiva, defensor do darwinismo social e da eugenia, que propôs o embranquecimento da população brasileira. Na carta, Lobato exalta a atividade da organização racista Ku Klux Klan. Para Lobato, os caboclos foram vítimas da “vingança inconsciente” dos negros, pois estes, ao se tornarem escravos, sentiam raiva, e a única forma de se vingarem dos brancos seria pelo enegrecimento das suas gerações.

 Várias são as menções notadamente racistas em suas histórias infantis. Desde Caçadas de Pedrinho até História de Tia Nastácia, Lobato reforçou estereótipos raciais e diminuiu a sabedoria popular negra. Um exemplo ilustra bem essa situação: Emília desrespeita a cozinheira Nastácia, chamando-a de “negra beiçuda” e “diaba”, e diz que suas histórias são fruto da “ignorância e burrice do povo”.

Lobato escreveu apenas um romance, O choque das raças, publicado em 1926. Na obra, ele compõe uma trama futurista em que os Estados Unidos elegem um presidente negro após a vitória da eugenia em 2228. O romance demonstra uma proposta de materializar um casamento ideal entre a eugenia e o futuro. O livro, no entanto, foi um fracasso de vendas nos Estados Unidos e teve pouca repercussão no Brasil. Apesar de Lobato alimentar, à época do lançamento, muitas expectativas em relação ao livro, o que se viu foi um grande repúdio do público estadunidense à obra devido ao seu conteúdo controverso, que mostrava a crueldade dos brancos norte-americanos em relação aos negros, que, no desfecho da história, são todos esterilizados.

Na coletânea O problema vital, atribuiu-se a Lobato uma redenção em relação a Jeca Tatu, pois, nos últimos capítulos, afirma-se que o caipira “não é Jeca Tatu, mas está Jeca Tatu”. De acordo com essa visão, Jeca é uma figura que está doente por conta da ineficiência estatal em prover saneamento básico e higiene para a população.

Apesar da ambiguidade ser característica marcante em sua vida, Monteiro Lobato, de fato, foi fiel por muito tempo aos ideais eugenistas. E sua redenção defendida por muitos dos seus seguidores também pode ser questionada. Para Lobato, a indolência e a pouca produtividade atribuídas ao brasileiro passaram a ser associadas às más condições de vida, mas o negro continuou sendo visto como um ser inferior.

Além disso, mesmo a sua literatura infantil contribuiu por longos anos para que estereótipos racistas fossem perpetuados pela sociedade, já que Lobato tinha ampla aceitação do público geral.  Se “o choque das raças” não teve a repercussão esperada pelo autor, sua saga infantojuvenil até hoje faz sucesso.

Kaique Oliveira de Santana / Estudante do curso de Ciências Econômicas da UFMG