2022 e direito à memória: uma proposta para a UFMG
Recentemente, morreu a professora Maria Célia Paoli, uma das grandes intelectuais brasileiras e importante militante pelo Direito à Memória. Maria Célia e Déa Fenelon, também de saudosa lembrança, ao longo de toda a década de 1980 e nos anos seguintes, foram ardorosas defensoras de que as disputas pelas memórias do Brasil e dos brasileiros e das brasileiras eram causas das mais importantes para a construção de uma sociedade e de um Estado democráticos no País.
Eram os anos de 1980, e lutar pelo Direito à Memória significava disputar os lugares e símbolos com os militares e com os movimentos civis autoritários, que, a partir do golpe de 1964, assumiram o governo da República e nos impuseram uma sangrenta ditadura por mais de duas décadas. Museus, praças, bandeiras, calendários, hinos, heróis, nomeação de ruas e de edifícios tornaram-se objetos de discussão e de disputas políticas.
Nas décadas seguintes, por meio de investimentos de grupos acadêmicos e de diversos profissionais – historiadores(as), arquivistas, museólogos(as), entre outros –, logramos construir instituições e políticas de memória e de produção do conhecimento histórico que, na luta contra o esquecimento, visavam tornar mais plural e densa a nossa compreensão do passado e de sua mobilização nas lutas travadas no presente.
Quando, em 2007, criamos o projeto Pensar a Educação Pensar o Brasil –1822/2022, nós o fizemos com a intenção de, no contexto do Bicentenário da Independência, que será celebrado em 2022, mobilizar a comunidade acadêmica e os(as) colegas professores(as) da educação básica para a discussão dos grandes temas que perpassam a educação nacional – dimensão fundamental de nossa constituição como Nação.
No horizonte de nossas indagações e de nossas ações, 2022 sempre se apresentou uma “data” emblemática para discutirmos o Brasil e as condições para construirmos, aqui, um país mais democrático, igualitário e justo. Pensar o Brasil por meio de uma interrogação sistemática acerca da educação sempre nos pareceu uma maneira muito salutar de avançarmos, política e metodologicamente, nessa construção coletiva e democrática. Por isso, desde o início, nos propusemos a entrar na disputa pelos sentidos da educação no espaço público, o que significou atentarmos para a história e para as memórias da educação brasileira.
No entanto, quando criamos o Pensar a Educação Pensar o Brasil, jamais imaginávamos que as comemorações do Bicentenário da Independência seriam conduzidas por um governo que, em tudo, mostra-se contrário aos princípios, às políticas e às ações que defendemos. Um governo que apregoa o obscurantismo e políticas de memória que exaltam o pior do nosso passado. Os sentidos de história e de memória nacionais que o atual governo e suas forças aliadas pretendem nos impor mobilizam um inadequado revisionismo, exaltam o autoritarismo e a violência, desprezam as mulheres e as populações negras, indígenas e pobres, entre outros coletivos. E será essa, certamente, a tônica das comemorações que serão organizadas e patrocinadas pelo governo federal e seus aliados em diversos estados da Federação.
É preciso, pois, mais uma vez, disputar os sentidos e as narrativas de história e de memórias.
É preciso, pois, mais uma vez, disputar os sentidos e as narrativas de história e de memórias. E nada melhor do que reunir as forças que atuam dentro da universidade para participar dessas disputas. Com esse propósito, dirigimo-nos à Administração da UFMG e à comunidade universitária para construirmos coletiva e institucionalmente um plano de comemorações do Bicentenário da Independência do Brasil.
Ao longo da última década, discutimos, com variados parceiros, possibilidades de atuação conjunta. Algumas ideias foram implementadas, outras não. Entre as que ainda não se concretizaram, duas merecem destaque: a primeira seria a produção de uma coleção de livros com ensaios sobre grandes temas e questões brasileiras dos últimos dois séculos. Em negociações malogradas com uma editora, elencamos mais de meia centena de temas, de abrangência geral ou específica, que merecem ser abordados: racismo, democracia, direitos humanos, educação, justiça, corrupção, populações indígenas, relações internacionais, fronteiras, metrópoles, ciências, artes, religiões e violência.
Em outra frente, pensamos em um grande portal da cultura e do conhecimento do Bicentenário da Independência do Brasil, que reuniria uma série diversificada de materiais – de documentação arquivística a livros, revistas, jornais, memórias, documentários e filmes – já existentes ou produzidos especificamente para alimentá-lo. Esse portal já seria um lugar de memória do Bicentenário e importante ferramenta de divulgação cultural e científica para o público não especializado. Além disso, seria um espaço fundamental de diálogo e interação com professores e professoras, com alunos e alunas da educação básica e com os movimentos sociais.
Imaginamos que muitos grupos na UFMG já estejam planejando e realizando ações tendo em vista o Bicentenário. O que estamos propondo é que, na UFMG, façamos um esforço coletivo e institucional para participar da disputa, no espaço público, pelos sentidos da memória e da história desses 200 anos de Independência. É um tema que interessa a todos nós e, hoje, mais do que nunca, não podemos deixar que ele seja conduzido exclusivamente pelo governo obscurantista e autoritário que atualmente dirige a República.
As comemorações do Centenário da Independência, em 1922, foram um marco em nossa história e, ainda hoje, ecoam em nossas memórias. Hoje, precisamos fazer mais e melhor, uma vez que temos todas as condições institucionais e a necessidade histórica de fazê-lo. É esse o desafio que lançamos à Reitoria e à comunidade universitária da UFMG.