Condado universal

O desafio da acessibilidade em uma sociedade inacessível

No último Censo Demográfico apresentado pelo IBGE em 2010, 45,6 milhões de pessoas declararam ter algum grau de deficiência, seja ela do tipo visual, auditiva, motora ou intelectual. Isso representa, pasmem, praticamente um quarto da população brasileira.

A data de 21 de setembro foi instituída em 1982 como o Dia Nacional de Luta da Pessoa com Deficiência, resultado de iniciativa que teve como porta-voz Cândido Pinto de Melo, um dos fundadores do Movimento pelos Direitos das Pessoas Deficientes. Somente duas décadas depois, o Dia Nacional de Luta da Pessoa com Deficiência foi oficializado pela Lei 11.133, de 14 de julho de 2005, com o intuito de legitimar as reivindicações dessas pessoas em favor da cidadania, da inclusão e da participação plena em sociedade.

As pessoas com deficiência não querem tratamento especial, mas, sim, a possibilidade de ser reconhecidas, resguardadas e integradas. Isso significa simplesmente oferecer-lhes a oportunidade de usufruir o acesso de que usufruem os não deficientes, em sua plenitude ou quase plenamente

Ainda que pessoas com deficiência representem 23,9% da população, a sociedade ainda não pratica a cultura da inclusão em seu dia a dia. Criar ambientes acessíveis é muito pouco quando a sociedade não se conscientiza sobre o sentido da acessibilidade e não se importa com aqueles a quem se destina. Quando não há consciência, esses instrumentos são usados para outros fins. Exemplos não faltam: motoristas que insistem em estacionar seus carros em vagas destinadas a pessoas com deficiência motora ou não deficientes que ocupam as rampas de acesso e obstruem o espaço do piso tátil reservado aos cegos.

Falta aos não deficientes o mínimo de empatia para se desprender da zona de conforto em que se encontram, colocar-se no lugar do deficiente e observar com atenção tudo que, no dia a dia, é negligenciado nesse aspecto. As pessoas com deficiência não querem tratamento especial, mas, sim, a possibilidade de ser reconhecidas, resguardadas e integradas. Isso significa simplesmente oferecer-lhes a oportunidade de usufruir do acesso de que usufruem os não deficientes, em sua plenitude ou quase. Apesar de não termos uma sólida cultura de acessibilidade, felizmente, temos vários projetos de inclusão social dedicados aos diversos tipos de deficiência, muitos deles acessíveis a um clique.

Pesquisando algo que me possibilitasse oferecer acessibilidade no meio digital, deparei com o projeto #PraCegoVer, idealizado por Patrícia Silva de Jesus, especialista em Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva e consultora da Unesco no Projeto Livro Acessível (2009–2013). Segundo a página oficial no Facebook, criada por ela em 2012, o projeto tem como função a “disseminação da cultura da acessibilidade nas redes sociais e, por princípio, a audiodescrição de imagens para apreciação das pessoas com deficiência visual”. A página reúne várias dicas de como realizar as descrições de forma eficiente – todos podem e deveriam aderir. O projeto vem crescendo exponencialmente desde sua criação, e páginas de grandes marcas privadas, como Coca-Cola, Avon e Postos Petrobras, e governamentais, como as do Conselho Nacional de Justiça, do Ministério Público e do Senado Federal, aderiram oficialmente à audiodescrição.

A princípio, acreditei que seria fácil redigir um texto capaz de descrever uma imagem, mas me vi preso a certas amarras  – a maior delas o hábito de adjetivar, função essa que nós, videntes, utilizamos sempre e tão deliberadamente, mas que pode interferir negativamente na experiência de interpretação das pessoas com deficiência visual. 

Ser obrigado a pensar maneiras de construir as descrições para que as imagens se tornassem realmente acessíveis foi desafiador e me fez entender o que Patrícia quis dizer com a hashtag “#PraCegoVer. A ideia carrega, em si, o princípio de que a cegueira às vezes está nos olhos de quem enxerga. O projeto existe para o cego que não enxerga a imagem e para o vidente que não enxerga o cego e, assim, nunca se dá conta de que pessoas com deficiência visual usam redes sociais. 

Trata-se de uma provocação, de um chamamento para as pessoas se enxergarem mais, saírem de suas zonas de conforto e perceberem que podem criar recursos de acessibilidade, mesmo que uma breve descrição de uma imagem na internet. Como a própria Patrícia explica, “esta hashtag existe para impactar, para despertar o olhar de quem lê e se pergunta: ‘Ué, pra que raios esta descrição está aqui?’. Então vai pesquisar mais um pouco e… zaz! Mais um vidente deixou de ser ‘cego’”.

Hoje me sinto mais confiante em exercer a acessibilidade na prática. É um projeto de vida. Aos poucos, acrescento a acessibilidade às minhas redes sociais, e mais do que isso, tenho a possibilidade de refletir sobre meus próprios privilégios e descobrir como posso me utilizar deles para tornar a vida de alguém mais simples. É libertador saber que o pouco que faço conscientemente faz do mundo um lugar mais inclusivo, uma descrição de cada vez.

Matheus Viana / Estudante de Letras Bacharelado/Produção Editorial e estagiário no setor de comunicação da Diretoria de Relações Internacionais (DRI) da UFMG