Árvores não bastam

Nem tudo é árvore

Coletivo de cientistas, do qual fazem parte professores do ICB, refuta tese de que reflorestamento maciço é solução eficaz contra o aquecimento global

Floresta de eucaliptos no Norte de Minas
Floresta de eucaliptos no Norte de Minas Amanda Lelis | UFMG

Em julho, um grupo de cientistas internacionais publicou, na revista Science, estudo em que defende o florestamento e reflorestamento de 900 milhões de hectares, sob o argumento de que essa medida seria capaz de promover o sequestro de 205 gigatoneladas de carbono (GtC) e mitigar o processo de mudança climática que atinge o planeta. Imediatamente, o estudo repercutiu em vários jornais ao redor do mundo. Afinal, se correta a tese, isso significaria que o simples plantio maciço e indiscriminado de árvores compensaria cerca de um terço de todo o carbono já emitido pelo homem ao longo de sua história (660 GtC), notadamente a partir do século 18, com a Revolução Industrial. 

A euforia, no entanto, durou pouco: no mês passado, um grupo transnacional de 46 cientistas – entre os quais, Fernando Augusto de Oliveira e Silveira e Geraldo Wilson Fernandes, professores do Instituto de Ciências Biológicas (ICB) da UFMG, além de outros seis pesquisadores que atuam em outras instituições do Brasil – publicou, na mesma revista, um duro comentário técnico sobre o artigo original, no qual defende que a estimativa de sequestro de carbono apresentada pela pesquisa estava fortemente superestimada. Mais do que isso, os comentaristas demonstraram que, se o plantio de árvores fosse realizado na perspectiva indistinta proposta pelo artigo original, ele poderia, em certos casos, colaborar não para reduzir o aquecimento global, mas para acelerá-lo, além de comprometer biomas.

Esse tipo de florestamento, explicam os pesquisadores, em vez de mitigar o aquecimento global, colaboraria, na verdade, para agravá-lo.


Entre os equívocos do artigo original [leia em Dados superestimados], os pesquisadores que assinam o comentário demonstraram que erroneamente considerava-se como positivo florestamento de campos, savanas e matorrais, ecossistemas cuja manutenção de biodiversidade pressupõe justamente a pouca cobertura de árvores, assim como julgava-se positivo o florestamento de regiões em que o dossel que seria formado pela copa das árvores reduziria o albedo terrestre – razão entre a quantidade de luz refletida e recebida pela superfície da Terra –, como as áreas de altas latitudes. Esse tipo de florestamento, explicam os pesquisadores, em vez de mitigar o aquecimento global, colaboraria, na verdade, para agravá-lo. “As árvores são menos refletivas que a neve, que o solo descoberto ou que os campos, portanto absorvem mais energia solar, que é finalmente emitida como calor. Assim, em altas latitudes e elevações, o efeito de aquecimento causado pelas árvores é maior que o efeito de resfriamento que elas causam via sequestro de carbono”, escrevem os pesquisadores em seu comentário. “Da mesma forma, árvores plantadas em r­egiões semiáridas e de baixa latitude podem produzir aquecimento por décadas, antes que os benefícios do sequestro de carbono comecem a surgir”, dizem.

Fernando Silveira: colonialismo científico
Fernando Silveira: colonialismo científico Arquivo pessoal

“A verdade é que o artigo contém vários erros metodológicos, a começar por partir de um conceito errado de floresta”, explica Fernando Augusto. “Seus autores consideram como floresta qualquer área que tenha mais de 10% do terreno preenchido por árvores: isso é falta de conhecimento ecológico, que revela um colonialismo científico muito torpe. Estamos falando de pessoas que, em sua maioria, não têm formação de ecologia de campo, mas, sim, no campo da engenharia florestal ou da modelagem matemática. Eles só trabalham com modelos matemáticos; ignoram como a natureza funciona efetivamente, a complexidade de seus ecossistemas. Falam em plantar árvores em lugares em que o clima não consegue suportar, em que a terra não consegue suportar. Para essas pessoas, tudo é árvore”, desabafa o professor.

Os interesses do capital

Geraldo Wilson Fernandes também ficou perplexo com a proposta de se florestar biomas como a savana e o cerrado. “O cerrado, por exemplo, é uma floresta de cabeça para baixo, um bioma importantíssimo para a produção de água, para a biodiversidade. Enchê-lo de árvores, como propõe o artigo, pode influenciar dramaticamente a produção de água, tornando ainda pior a crise ambiental que o mundo está vivendo. Trata-se, pois, de estratégias que não têm base científico-ecológica alguma; elas propõem, no fim das contas, transformar biomas complexos em grandes roças de eucaliptos, que não têm relação nenhuma com a fauna e a flora local e levam o solo ao caos. Portanto, é preciso entender qual a motivação de se propor algo desse tipo. São medidas que atendem não as necessidades do meio ambiente, mas ao interesse de empresas ligadas ao ramo da silvicultura”, alerta.

Fernandes: interpretação deturpada
Fernandes: interpretação deturpada Foca Lisboa | UFMG

Em artigo de 2016, intitulado Florestação de savanas: um iminente desastre ecológico (Afforestation of savannas: an impending ecological disaster, no original), Fernandes já alertava para o erro de se florestar ecossistemas abertos, como cerrados e campos, cuja condição natural não prevê a dominância por árvores. No estudo, o professor alerta que a florestação de áreas desse tipo tem crescido rapidamente ao redor do mundo, principalmente no Brasil, na Colômbia, na Nigéria, no Congo e na China, com o plantio de monoculturas exóticas de eucalipto e pinus. Segundo Geraldo Fernandes, esse tipo de ação é fruto de uma interpretação deturpada dos conceitos de florestação e reflorestação que, não raro, “ocultam e favorecem interesses econômicos de curto prazo de alguns, em detrimento das metas globais de conservação”.

Geraldo Fernandes destaca a importância de recuperar biomas desse tipo apenas com “a implementação de plantas nativas” e “nas condições ecológicas apropriadas para a restauração do próprio ecossistema”. “É necessária uma ação urgente das instituições de pesquisa, das agências governamentais e das organizações internacionais para impedir o iminente desastre ecológico que a arborização com árvores exóticas – ou mesmo ­geograficamente nativas, porém não próprias do bioma – está trazendo para as savanas do mundo.” O professor lembra que, mesmo para o reflorestamento de áreas efetivamente florestais, é preciso desenvolver estudos sobre a especificidade das floras locais. “As empresas interessadas na silvicultura não vão fazer esses estudos. As áreas florestais precisam, sim, ser reflorestadas, mas com espécies nativas. O risco, nesse caso, é o plantio de espécies exóticas que podem causar prejuízos enormes ao ecossistema local, eliminando espécies nativas. Foi o que aconteceu no Quênia, há algumas décadas”, ele lembra.

Segundo Fernando Augusto, dada a obtusidade do que propõe, o artigo publicado na Science recebeu outras seis críticas, além daquela que ele e Geraldo Fernandes ajudaram a formular. “A verdade é que existe uma agenda política – que não é só política, mas também econômica – de fomentar o plantio de árvores. Existe uma indústria por trás desse tipo de discurso acadêmico, uma indústria que está financiando esses projetos de florestamento. Há muita gente ganhando dinheiro com o plantio de árvores”, alerta Fernando Silveira. 

A pesquisa publicada pela Science foi financiada pela DOB Ecology, fundação ambiental holandesa, pelo Plant-for-the-Planet, grupo de fomento ao plantio de árvores, e pelo ministério alemão para a cooperação econômica e o desenvolvimento. Sua coleta de dados, em particular, foi parcialmente subsidiada pela iniciativa internacional para o clima do ministério alemão para o meio ambiente, conservação da natureza, construção e segurança nuclear.

Dados superestimados

O comentário técnico assinado pelos pesquisadores da UFMG indica, ainda, que o artigo da Science superestimou em quase cem gigatoneladas os ganhos de carbono orgânico no solo (SOC) que o aumento da cobertura arbórea geral causaria, na medida em que assumiu, equivocadamente, que áreas sem árvores necessariamente não contêm SOC, quando, na verdade, em áreas como as das savanas tropicais úmidas, por exemplo, 86% de todo o carbono está no solo. 

“Nossas correções para o SOC, que visam evitar as consequências não intencionais do plantio mal direcionado de árvores (ou seja, aquecimento e perda de biodiversidade), reduzem a estimativa de potencial sequestro de carbono de Bastin et al. [autores do artigo original] por um fator de 5, limitando-se à quantidade ainda substancial de 42 GtC”, ponderam os pesquisadores. “Embora a restauração ecológica, se cuidadosamente implementada, possa ter um papel na mitigação da mudança climática, ela não substitui a necessidade de se interromper a maior parte das emissões de combustíveis fósseis, para que possamos cumprir as metas do Acordo de Paris”, alertam. “Essa ação deve ser acompanhada de políticas que priorizem a conservação de ecossistemas intactos da biodiversidade, independentemente de conterem muitas árvores”, insistem.

Ewerton Martins Ribeiro