O que os olhos não veem

A refundação da universidade pública?

Pela sua rapidez e efeitos imprevisíveis, os recentes acontecimentos e transformações sociais sugerem a necessidade de uma nova dinâmica que se aplique às universidades públicas, seja em sua lógica, seja em sua ação e perspectivas. Com efeito, observa-se, de um lado, uma rejeição aos padrões científicos e sua racionalidade pautada em evidências e, de outro, a necessidade, cada vez mais premente, de geração e aplicação do conhecimento como possibilidade concreta de transformação social e garantia de acesso e inclusão. Isso em um contexto jurídico e normativo com peculiaridades que se traduzem muitas vezes em dificuldades na atuação e capacidade de interação com a sociedade.

Nesse ambiente de muitas críticas externas, aliadas à escassez de recursos e a um natural incômodo e perplexidade frente às possíveis alternativas que não paralisem seu funcionamento, pergunta-se: como a universidade pública pode estar à frente dessas transformações mantendo sua posição histórica de protagonismo? Longe de propor soluções, pelo menos três pontos merecem reflexão. 

A universidade pública acaba por falar com frequência para si mesma, tendo dificuldades em fazer do seu imenso e indispensável patrimônio algo devidamente assimilado pelo seu entorno e motor de transformações em diferentes níveis.

O primeiro, de natureza conceitual, está ligado à forma como a universidade pública interage com a sociedade, seja pela sua tradicional e clássica vocação de formação e geração de conhecimento, seja pela divulgação de seus trabalhos e/ou atividades. O que se observa, sem sombra de dúvida, é um relativo distanciamento do seu contexto mesmo com atividades de extensão expressivas e de grande relevância (por exemplo, os hospitais universitários e seus diversos serviços prestados à população), mas nem sempre com visibilidade para além de seus limites. Ou seja, a universidade pública acaba por falar com frequência para si mesma, tendo dificuldades em fazer do seu imenso e indispensável patrimônio algo devidamente assimilado pelo seu entorno e motor de transformações em diferentes níveis.

O segundo, de natureza estrutural, está relacionado à organicidade atual, que acaba por tolher e/ou dificultar ações que se adaptem de forma dinâmica, sem ruptura de seu ethos funcional. Trata-se de reconhecer que os formatos organizacionais existentes (departamentos e colegiados) embora tragam consigo a segurança de decisões coletivas em um ambiente diverso, de maturidade e equilíbrio, nem sempre apresentam velocidade e agilidade que reconheçam o novo, que muitas vezes não pode estar condicionado a amarras e/ou restrições temporais. Ou seja, o dilema de se utilizar um ferramental ou modus operandi típico de um momento histórico distinto em um ambiente altamente volátil e dinâmico acaba por gerar dificuldades em assimilar novidades ou inovações presentes na dinâmica social que a universidade necessariamente precisa acompanhar.

O terceiro aspecto, de natureza estratégica e prática, diz respeito à forma reativa de suas ações, isto é, a universidade pública se apresenta cada vez menos propositiva em um ambiente de restrições orçamentárias. Trata-se, em grande medida, de recuperar seu protagonismo e responder ao ambiente hostil com uma agenda positiva, que pense e proponha políticas, estratégias e ações para a sociedade no seu cotidiano imediato e em suas perspectivas de longo prazo. 

Aqui, é possível refletir, por exemplo, sobre o atual arranjo por cursos e estruturas curriculares vigentes, que muitas vezes não respondem às prementes demandas e necessidades que as diferentes áreas do conhecimento apresentam em sua dinâmica e interação permanente com seu meio. É imperativo discutir a possibilidade de fusões/rearranjos que favoreçam o conteúdo e não a estrutura formal, criando áreas comuns ou núcleos gerais e que tenham afinidades e/ou similitudes, abrindo a possibilidade de trilhas especializadas em uma reorganização curricular pautada no conhecimento em suas múltiplas fontes e na formação do aluno. Isso naturalmente geraria impactos nas estruturas organizativas existentes, com possíveis efeitos na racionalização de atividades e na sobreposição daquilo que seria comum. 

Embora seja um recorte que indique somente alguns pontos desse complexo debate, trata-se, em grande medida, do reconhecimento de que é preciso agir, entendendo as limitações, mas não fugindo da responsabilidade. A universidade pública, responsável pela formação de alto nível e por  pesquisas básicas e aplicadas, geradoras de conhecimento e transformações sociais, além de seu relevante papel social, precisa agir, sob pena de se ver encolhida e/ou relegada a um papel secundário por outros atores e narrativas que passem a ocupar sua posição, corroendo seu patrimônio e sua história. 

Allan Claudius Queiroz Barbosa / Professor titular da Faculdade de Ciências Econômicas (Face). Residente do Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares (IEAT) 2019/2020