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Mas, afinal, do que estamos falando quando o tema é heteroidentificação racial?

Iniciam-se os processos para ingresso nos mais variados cursos de graduação da UFMG. É um momento em que se conjugam as expectativas dos novos estudantes com a responsabilidade político-administrativa da instituição que os acolhe. Ao mesmo tempo, a efetividade das políticas que adota precisa ser garantida. Desde esse início, a UFMG deve afirmar a centralidade das políticas de educação como eixo importante para a transformação social.

É exatamente nessa conjuntura que se insere a política de ações afirmativas, em sua modalidade mais conhecida (cotas raciais), bem como os mecanismos necessários para assegurar que essa política alcance os fins pretendidos. É disso que estamos falando quando nos referimos à heteroidentificação racial, como instrumento complementar à autodeclaração. 

O procedimento de heteroidentificação racial consiste em utilizar a percepção social de outro(s), que não a própria pessoa, para promover a identificação racial.

É bastante comum que as pessoas, ao ouvirem o termo heteroidentificação pela primeira vez, indaguem se há alguma relação com o campo da sexualidade – orientação sexual (homo ou heterossexualidade). Embora o termo refira-se a aspectos que constituem a identidade dos sujeitos, o procedimento de heteroidentificação diz respeito ao modo como as pessoas são socialmente identificadas e posicionadas no que diz respeito a grupos raciais. Nesse sentido, o procedimento de heteroidentificação racial consiste em utilizar a percepção social de outro(s), que não a própria pessoa, para promover a identificação racial. É por isso que se utiliza o radical grego hetero, que designa a ideia de outro e que se distingue do radical auto, que traz a ideia de próprio. 

A publicação da Lei 12.711/12, que reserva vagas para pessoas negras (de cor preta ou parda) no ensino público superior, representou passo importante para reparação da trajetória de exclusão e negação de direitos que permeia a história da população negra no Brasil. As desigualdades materiais e simbólicas entre negros e brancos são tamanhas que se faz necessária a criação de políticas que assegurem o acesso a direitos fundamentais, como a educação, restabeleçam o equilíbrio da balança social e, ao mesmo tempo, combatam o racismo, de forma a contribuir na positivação da identidade negra.

Implementar a política pública com foco na promoção da igualdade racial e garantir que ela alcance seu público-alvo não é tarefa fácil, embora extremamente necessária. E antes que se diga que é uma atividade impossível no Brasil, relembremos que a identificação racial é feita rotineiramente no âmbito das relações sociais privadas, públicas e até institucionais, em contextos nada afirmativos. Identifica-se o sujeito negro associando-o a estereótipos negativos, patológicos e desviantes, o que significa que, infelizmente, essa identificação nunca pareceu ser uma questão tão problemática e difícil em nossa sociedade. Por que então seria um complicador valer-se do olhar social em uma perspectiva de garantia de direitos e não de exclusão?

Em nossa perspectiva, a política de cotas e a necessidade de garantir que seus sujeitos de direito tenham acesso a ela toca no que se pode chamar de “calcanhar de Aquiles” da nossa sociedade: refletir sobre nossas relações étnico-raciais. Essa reflexão implica, sem dúvida, desconstituir mitos e romper com narrativas harmônicas e confortantes que nos faziam dormir “o sono dos justos” sob a alegação de que “somos todos iguais”, mesmo que as estatísticas e a percepção cotidiana mostrem nitidamente que “uns são mais iguais que outros” e que podemos identificar racialmente quem é a população que mais morre no Brasil, que predomina nos presídios ou que se encontra em condição de desemprego e desumanidade. 

Trata-se de uma política que, assim como outras, precisa ser acompanhada e fiscalizada a fim de beneficiar a população negra. Logo, a heteroidentificação deve ser pensada a partir desse contexto, pois não há interesse público em interferir na esfera do sentimento ou da cultura das pessoas. No entanto, em se tratando de uma política pública, é necessário determinar o seu público-alvo e verificar se o sujeito está sendo percebido socialmente como destinatário dela.

Identifica-se o sujeito negro associando-o a estereótipos negativos, patológicos e desviantes, o que significa que, infelizmente, essa identificação nunca pareceu ser uma questão tão problemática e difícil em nossa sociedade. Por que então seria um complicador valer-se do olhar social em uma perspectiva de garantia de direitos e não de exclusão?

As cotas raciais não dispensam a autopercepção dos candidatos. Esse é o primeiro passo e exige reflexões importantes: “eu sou a pessoa que essa política afirmativa pretendeu alcançar?” Ou ainda: “eu faço parte desse grupo racial (negro), que é posto em condição de inferioridade por conta da raça?” E por fim: “Eu sou negro? Sou visto e tratado socialmente como pertencente a esse grupo racial?”

Trata-se de um exercício intenso de autorreflexão, que perpassa por processos de construção-desconstrução pessoal e coletiva da própria identidade e de estereótipos, que precisam ser feitos antes de alguém se candidatar a uma vaga reservada a pessoas negras. Lembramos que todo o processo de ingresso é um convite à reflexão: desde a inscrição, o candidato é chamado a se manifestar sobre sua identidade racial (autodeclaração). Em seguida, ele redige uma carta consubstanciada na qual pondera para si próprio os motivos que o fazem se identificar como membro do grupo racial negro. Por meio de assinatura e manifestação oral, ele confirma sua autodeclaração.

Contudo, a autodeclaração já se mostrou insuficiente para a efetividade da política pública. Por isso, de forma complementar a esse instrumento, a comunidade acadêmica, diversamente representada em termos de gênero, raça e segmento profissional, corrobora (ou não) a manifestação do candidato, com base na percepção social sobre a raça daquela pessoa. É a esse procedimento que chamamos de heteroidentificação racial.

Trata-se, portanto, de um momento de reflexão cidadã, já que as cotas raciais têm importante papel na transformação social e na redução das desigualdades, por incidirem em eixos estruturantes da sociedade – educação, empregabilidade e renda – e por possibilitarem que a população negra tenha representatividade em espaços que simbolizam status, poder e riqueza. 

Shirley Aparecida Miranda: professora da Faculdade de Educação e presidenta da Comissão Permanente de Ações Afirmativas e Inclusão
Daniely Roberta dos Reis Fleury: diretora de Políticas de Ações Afirmativas da Pró-reitoria de Assuntos Estudantis
Rodrigo Ednilson de Jesus: professor da Faculdade de Educação
Licinia Maria Correa: professora da Faculdade de Educação e pró-reitora adjunta de Assuntos Estudantis
Tarcísio Mauro Vago: professor da Escola de Educação Física, Fisioterapia e Terapia Ocupacional e pró-reitor de Assuntos Estudantis