Tijolo por tijolo

'Mestre não é quem sempre ensina, mas quem, de repente, aprende'

Cursinho popular ajuda jovens de baixa renda a ingressar na UFMG

Sala de aula do cursinho Guimarães Rosa antes da pandemia
Sala de aula do cursinho Guimarães Rosa antes da pandemia Arquivo pessoal

Esther Tomaz de Matos, moradora do bairro Juliana, na periferia de Belo Horizonte, sempre gostou de ajudar os outros. Quando brincava, fingia conversar com as bonecas, a quem dava conselhos. Hoje, aos 18 anos e depois de concluir o ensino médio, a jovem decidiu fazer o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) para tentar uma vaga no curso de psicologia da UFMG. Esther quer ser aprovada na universidade pública porque não tem condições de pagar as mensalidades de uma instituição privada. A dificuldade financeira mostrou-se um obstáculo no momento em que a jovem começou a se preparar para as provas. Como passar na UFMG sem fazer um cursinho preparatório de qualidade? 

A esperança de Esther apareceu no início deste ano, quando a jovem descobriu que a UFMG oferecia alguns cursinhos populares de preparação para o Enem. Depois da seleção, que ocorreu por meio de uma redação e de sorteio, ela conseguiu uma vaga no Cursinho Popular Guimarães Rosa. Trata-se de uma iniciativa da Faculdade de Medicina, conduzida por voluntários que são alunos de graduação e de pós-graduação da UFMG. O cursinho surgiu com o objetivo de preparar a comunidade para a realização do Enem, oferecendo aulas gratuitas para adolescentes de baixa renda que estudam em escolas públicas. 

O Guimarães Rosa iniciou as atividades em 2019 e é um desdobramento de esforço empreendido pelos movimentos sociais em favor da democratização do ensino público. Segundo a professora Isabela Resende, do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da UFMG, coordenadora do curso juntamente com as professoras Aline Almeida Bentes e Daiana Elias Rodrigues, apesar de a Universidade já contar com outros cursos preparatórios populares, é emblemática a criação de um projeto como este no âmbito da Faculdade de Medicina.

“Por muitos anos, o curso de medicina foi frequentado por uma elite que vinha da rede particular de ensino e que tinha mais acesso à educação. É emblemático que alunos do curso, principalmente aqueles que entraram após o início do sistema de cotas, entendam a importância da ampliação do acesso e da mudança estrutural na universidade”, explica a professora. 

Ela conta que a ideia foi dos alunos cotistas da Faculdade de Medicina, que a procuraram com a intenção de oferecer um curso popular que ajudasse jovens a ingressar na universidade pública. Posteriormente, os cotistas “acabaram mobilizando os outros colegas, e isso ajudou a mudar a mentalidade de todos os alunos, que perceberam o quanto é enriquecedor que a Universidade e o curso de medicina tenham alunos de diversos perfis socioeconômicos”.

Camila em 2019: cursinho popular a ajudou a ingressar na Faculdade de Medicina; hoje, ela atua como voluntária no Guimarães Rosa
Camila em 2019: cursinho popular a ajudou a ingressar na Faculdade de Medicina; hoje, ela atua como voluntáriaArquivo pessoal

Sonho possível

Camila Sales Barros, estudante do quinto período de Medicina, é uma das fundadoras do cursinho. Ela considera que a sua trajetória exemplifica a importância desse tipo de iniciativa. Cotista, Camila ingressou na UFMG depois de frequentar o Cursinho Popular Equalizar, iniciativa da Escola de Engenharia. “Um aluno carente costuma achar que fazer medicina na UFMG é algo intangível. Ao me verem ali, os estudantes do cursinho se reconhecem e entendem que este é um sonho que pode ser alcançado, pois eu venho de uma realidade semelhante à deles”, diz a voluntária do Guimarães Rosa.

O nome do cursinho também não foi escolhido por acaso. A frase que dá título a esta reportagem, de autoria do escritor Guimarães Rosa, ilustra bem a proposta do projeto. O voluntário Lucas Giandoni Perez, estudante do oitavo período, destaca que, no Guimarães Rosa, o aprendizado é de via dupla: “Como voluntários, aprendemos a trabalhar em grupo e a lidar com o outro. Também crescemos como cidadãos. Além disso, focamos nossa atuação no campo da educação libertadora tão pregada por Paulo Freire, contribuindo, assim, para o processo emancipatório dos nossos alunos”.

Camila concorda que o ambiente do cursinho popular possibilita troca de experiências para todos. “Quando ingressa como aluno em um cursinho popular, você recebe um suporte que, muitas vezes, não teve na escola onde cursou o ensino médio. No cursinho, todos querem ajudar e torcem por você. Essa troca possibilita que os voluntários também aprendam e se desenvolvam, tanto profissionalmente quanto pessoalmente. Transformamos vidas e somos transformados”, diz.

Adaptação na pandemia

Apesar de ter sido estruturado para aulas presenciais, o curso sofreu mudanças para se adaptar à realidade do ensino remoto imposta pela pandemia do Sars-CoV-2. As aulas são ministradas pelos 66 voluntários, e alguns deles também atuam como tutores, sendo responsáveis por contatos semanais com os alunos do cursinho. Nesse contato, eles tiram dúvidas e dão apoio aos estudantes, encaminhando-os para o atendimento psicológico, quando necessário. 

“É muito legal porque os voluntários nos acompanham para saber como a gente está, se estamos dando conta de estudar todos os conteúdos e se estamos aflitos. Esse é um momento da vida de muito estresse e pressão, então o suporte que eles nos dão é maravilhoso. Eles nos ajudam a montar um cronograma de estudos e nos ensinam os melhores métodos de aprendizagem”, diz Esther Tomaz, a jovem que na infância dava conselho às suas bonecas e hoje pretende cursar Psicologia.

Esther aposta no cursinho para realizar o sonho de cursar psicologia
Esther aposta no cursinho para realizar o sonho de cursar psicologia Arquivo pessoal

Esther conta que vive com os pais e os irmãos e que sua família não teria condições de pagar por um curso preparatório. Para a estudante, o cursinho popular é uma oportunidade única de se preparar para o Enem. “O Guimarães Rosa vai me ajudar a tentar a vaga no curso de psicologia da UFMG. Mesmo na pandemia, ele tem sido um alento. É complicado manter o foco a distância, mas os professores me ajudam demais. Eu adoro as aulas e fiquei maravilhada com os recursos. A gente acha que vai ser ruim por ser popular, mas é o contrário. Eu sou apaixonada pelos professores do Guimarães Rosa, eles colocam muito carinho e amor no que fazem”, elogia. 

O Cursinho Guimarães Rosa também fornece apostilas doadas por um curso tradicional de Belo Horizonte a todos os alunos. O curso oferece aulas diárias e, tendo começado com apenas 20 vagas, já conta com 40 alunos em seu segundo ano de atividades. Na pandemia, os voluntários estão fazendo uma campanha para arrecadação de computadores para que os alunos tenham condições de assistir às aulas. Apesar de o curso ser uma iniciativa da Faculdade de Medicina, ele prepara estudantes interessados em todas as carreiras. A primeira turma, constituída no ano passado, teve dois aprovados na UFMG, nos cursos de Direito e de Comunicação Social. 

“Nossa missão é ajudar os alunos jovens, carentes e de baixa renda a ingressar em uma universidade pública e de qualidade. Então é gratificante quando vemos a aprovação desses estudantes, é um sentimento de dever cumprido”, conclui a professora Isabela Resende.

Em rede

Para promover a democratização do acesso à universidade pública, a UFMG lançou, no ano passado, a Rede de Cursinhos Populares e Comunitários, iniciativa que busca ser um espaço de troca de experiências e intercâmbio de metodologias para potencializar a ação dos cursinhos na comunidade externa. A iniciativa reúne a Pró-reitoria de Extensão (Proex) e cursos populares que funcionam no âmbito da Universidade, como o Equalizar, da Escola de Engenharia, o Humanizar, da Fafich, o Guimarães Rosa, da Faculdade de Medicina, o Dom Quixote e o Pró-Imigrantes, ambos da Faculdade de Letras (Fale), o FaceEduca, da Faculdade de Ciências Econômicas (Face), e o Programa de Educação de Jovens e Adultos (EJA), do Centro Pedagógico da UFMG.

Grupo de voluntários do cursinho: mudança de mentalidade
Grupo de voluntários: mudança de mentalidade Arquivo pessoal

Luana Macieira