África: duas histórias

Revolução educacional

Aos 15 anos, um jovem interno do Colégio Anchieta, em Nova Friburgo (RJ), publicou seu primeiro texto. ‘Vida Nova’ – que saiu no dia 14 de abril de 1918 no jornal Aurora Collegial – falava da expectativa da chegada à nova escola, “com a alma povoada de esperanças miríficas e sonhos maravilhosos”. Sonhos esses que terminariam em 1919, quando Carlos Drummond de Andrade foi expulso por “insubordinação mental”, após discutir com um professor. O acontecimento comprova que existe uma tendência escolar arcaica no sentido de formar “conformistas incompetentes” e desencorajar “rebeldes competentes”. Tal opção ideológica vai ao encontro da frase de Giuseppe di Lampedusa, em O Leopardo (1959), que inspira há séculos as lideranças políticas conservadoras: é preciso mudar para continuar tudo na mesma. 

Não basta manter a velha tradição dos pequenos ajustes, como fizemos no século 19, reduzindo o sofrimento dos escravos, mas sem fazer a abolição. Avançamos sem mudar. Como se tivéssemos horror às mudanças de rumo, às revoluções. Chegamos ao século 21 cercados por dois muros: o da desigualdade e o do atraso. A história mostrou que a economia não constrói, por si só, uma sociedade igualitária e desenvolvida. Porém, já passou a hora de uma revolução social que subverta a estrutura econômica. Podemos derrubar os dois muros que cercam o Brasil com uma revolução na educação. 

A educação de base é o único caminho para derrubar o muro da desigualdade, dando oportunidades iguais a todos, desde a infância; é o único caminho para derrubar o muro do atraso, permitindo a construção do capital do conhecimento. Se o Brasil fizer esse esforço, teremos dado o salto que nos tem sido negado. Teremos feito uma revolução doce. Com lápis, não fuzis; escolas no lugar de trincheiras; distribuindo conhecimento, em vez de concentrar capital; fazendo das crianças as portadoras do futuro. A revolução educacional é possível – e urgente. Porque começamos a esbarrar em outro muro: o da cultura política acomodada, que vê o futuro como pequenos avanços. É essa acomodação que une os grandes partidos no mesmo projeto, com pequenas diferenças, e que torna tão difícil escolher em quem votar.

Educação não é produto descartável, massa de tomate, pasta de dente e muito menos automóvel. Educação, conforme preconiza a Constituição, é um direito. Quem não entender isso não pode ser chamado de educador. No máximo, pode ser um mercenário. A onda privatizante que tomou conta do país fez crer que tudo o que é estatal é lixo. Numa lógica tortuosa, concluiu-se que tudo o que é privado é bom. Ser um estabelecimento privado, acima de outros questionamentos sobre qualidade e ética, tornou-se sinônimo de ser moderno e próspero. A realidade está mostrando quão enganosa e arriscada é essa lógica. As escolas públicas podem não ser um primor de qualidade, mas isso não quer dizer necessariamente que as instituições privadas sejam diferentes. Às possíveis falhas educacionais do setor privado da educação, que podem ou não ser intencionais, acrescenta-se o mercantilismo em estado bruto de algumas escolas. 

Não é possível imaginar que a educação seja negociável por mais que os donos de estabelecimentos digam que têm direito ao lucro em seus negócios. Um país que admite essa ideia perde todas as suas referências de cidadania e respeito humano. É uma ilusão achar que práticas mercantilistas serão abolidas para sempre por força de lei, embora a lei tenha o poder de coibir os abusos. Só mesmo a defesa séria do ensino público gratuito pode acabar com os mercenários do ramo. Acostumamos a acreditar que o ensino público é lixo e acabamos descobrindo que não há alternativa viável fora dele.

No sistema republicano, a escola pública é projetada para ser a instituição que tem o papel de integrar as pessoas de origens e crenças diversas na sociedade por meio da transmissão da mesma matriz de valores a todos. Também se imagina que a escola, por meio das habilidades ensinadas, seja capaz de equalizar as chances futuras de pessoas de origens sociais desiguais e diferentes. Embora esses sejam objetivos declarados do sistema escolar, a sociologia da educação demonstra que as escolas, em vez de funcionarem como instituições de mobilidade social, acabam reproduzindo desigualdades. Lamentavelmente, a pedagogia do “pulso firme” ainda prevalece sobre a pedagogia do “jogo de cintura” como orientação disciplinar. A infraestrutura e a arquitetura da escola devem ser orientadas para que ela seja um “espaço encantado” com a missão de formar seres humanos capazes de construir um mundo realmente civilizado, sem injustiça social.

As condições de sucesso escolar para alunos em situação de vulnerabilidade podem ser melhoradas, e muito, se houver uma política pública que assegure a atração e retenção de bons professores e lhes dê material de apoio adequado. Ajudaria muito se investíssemos na remuneração do professor, alocando-o em uma única escola, com tempo para ali, colaborativamente, preparar suas aulas e aprender com os colegas. Também ajudaria se tornássemos a formação inicial do professor mais adequada aos desafios da sala de aula e não enfatizássemos apenas os fundamentos da educação. Mas se, além disso, pudermos reduzir o impacto das condicionantes socioeconômicas no desempenho escolar do aluno, por meio de um investimento forte e focado em educação infantil de qualidade e cuidados na primeira infância, teremos grande chance de combinar qualidade com equidade, como sustenta o Objetivo do Desenvolvimento Sustentável, recém-aprovado pela ONU, para a educação (ODS-4), a ser atingido até 2030: “Assegurar a educação inclusiva, equitativa e de qualidade e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos”.


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Marcos Fabrício Lopes da Silva /Jornalista, poeta e doutor em Estudos Literários pela UFMG